sábado, 21 de fevereiro de 2015

3743) Dicionário Aldebarã IX (21.2.2015)



(ilustração: Arzach, Moebius)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Skensoul”: a sensação de não conseguir lembrar a identidade, o nome, o rosto de uma pessoa, mas lembrar com precisão todo o complexo de emoções que em nossa memória está associado a ela.  

“Campertuis”: a atitude de alguém que está fazendo várias coisas ao mesmo tempo, como tomar café da manhã, assistir TV e falar ao celular simultaneamente. 

“Amboure”: a sensação inexplicável de que todos os nossos problemas se resolverão ao mesmo tempo graças a um único fato que não imaginamos qual seja. 

“Talwin”: a sensação incômoda de ver uma pessoa carregando um objeto que parece ser mais pesado do que ela.

“Ustahan”: o dia convencional de jejum que se segue às datas festivas com ceias que reúnem toda a família.  

“Oldavires”: aplica-se a todas as pessoas que dão pouca atenção ao ambiente que as cerca e estão o tempo inteiro atravancando a passagem com seus veículos, etc.  

“Semajy”: pessoas extremamente cerimoniosas que passam horas para dizer ou pedir algo que a essa altura já ficou óbvio para todo mundo. 

“Bargle”: a fala ininteligível dos bebês, e também os significados intencionais que a família fica ansiosamente lhe atribuindo.

“Icterah”: a sensação de inebriação e de expectativa misturada com receio de quem embarca numa empreitada de grande porte.  

“Daiobill”: a falsa sensação de anoitecer produzida por uma chuva que escurece o céu durante o dia. 

“Endivar”: as pequenas mudanças no comportamento de alguém muito próximo que nos indicam que algo está acontecendo, embora a gente não possa adivinhar o que é.  

“Abofrin”: nossa tendência a imaginar que se uma sequência de fatos até agora assumiu uma forma, os próximos fatos também estarão sujeitos a ela.

“Ambiloon”: o lado bom e oculto de toda pessoa antipática, ou o lado negativo e oculto de toda pessoa simpática.  

“Todills”: qualquer solução repentina para um problema, que aparece como que caída do céu.  

“Nostres”: banhos de mar coletivos, noturnos, na época em que o sol forte do verão torna as praias inacessíveis.  

“Lequirum”: pequenas gavetas sob a mesa de jantar onde as pessoas da casa guardam seus talheres especiais, copos, etc.  

“Mausbaq”: rebatedores de luz pintados com tinta prateada e colocados à cabeceira da cama, para refletir a luz do teto e facilitar a leitura de quem está deitado.



2 comentários:

Unknown disse...

No outro mundo
Estava uma tarde num evento literário quando percebi que uma senhora de cabelos grisalhos e longos caminhava na minha direção, olhando-me fixamente e sorrindo. Senti uma Skensoul, mas, com sucesso, disfarcei. É uma tarefa relativamente fácil para quem está habituada a diariamente ter campertuis para conseguir dar conta da árdua rotina. Claro que de vez em quando dá vontade de jogar tudo pro alto simplesmente por sentir uma amboure e acreditar que será assim. Mas acabo prosseguindo. Sempre prossigo.
Após um breve cumprimento e alguns rápidos comentários, ela foi embora e deixou-me mais tranquila. Mas não por muito tempo pois logo encontrei dois jovens semajy. Fiquei então olhando pros lados, como à espera que acontecesse um todills e acabasse logo com aquela situação desagradável de querer interrompê-los para que fossem claros. É tão angustiante quando a da pessoa que parece falar em bargle, e nos faz tentar adivinhar o que quer dizer através de suposições.
Bom, quando consegui ficar sozinha, o evento já estava se esvaziando e achei melhor voltar pra casa. Enfrentei um trânsito cheio de oldavires e dirigi com muita cautela devido a daiobill que me obrigou a acender os faróis do veículo antes das 17:00hs.
Ao chegar em casa, deparo-me com minha filha mais velha olhando-me de soslaio, e percebi que estava a endivar. Tentei inquiri-la mas ela não foi receptiva. Só depois de algum tempo e muita insistência, revelou-me que sentia um pouco de icterah, pois se aproximava a data da formatura e do fechamento de um importante ciclo na sua vida. Como teve muitas dificuldades no último ano, ela foi acometida de abofrin e acreditava que essa nova etapa poderia ser influenciada pelos acontecimentos anteriores.
Acalmei-a, falei-lhe que não sentia uma talwin quando olhava para ela e que tinha certeza de que daria conta de tosos os desafios. Tomei suas mãos nas minhas, levei-a até a mesa de jantar e retirei da lequirum as taças finas que guardo para ocasiões mais que especiais. Brindamos com a mais pura e cristalina água gelada, visto que não bebemos nada alcóolico, e nos abraçamos. Prometi a ela que antes do término do verão a levaria ao litoral, para alguns nostres. Depois jantamos e ficamos na sala, conversando sobre amenidades.
Mais tarde, ao deitar, refleti sobre os acontecimentos daquele dia. Não fui muito paciente naquele evento, é bem verdade, devemos sempre procurar enxergar nas pessoas o ambiloon, para que não fiquemos apenas com uma única impressão delas. Sorri ao lembrar de minha filha e suas dúvidas e medos. Sabia que, com esforço e coragem, iria superá-los.
Aconcheguei-me nos travesseiros, ajustei o mausbaq e prossegui a leitura de meu atual livro de cabeceira, o que rapidamente levou-me a um sono profundo. Acordei pela manhã de supetão, como se houvesse levado um susto.
– O que foi? - perguntou-me meu marido.
Ainda sonolenta, respondi:
- Esquisito... Sonhei que morava em Aldebarã-5!

RLCA disse...

Ficou ótimo o exercício de Mabel Amorim. Chamou-me a atenção o fato de ela ter empregado "endivar" como verbo ("Ao chegar em casa, deparo-me com minha filha mais velha olhando-me de soslaio, e percebi que estava a endivar."), provavelmente influenciada pelo "ar" final, interpretado como desinência verbal. Na definição do dicionário, porém, pareceu-me ser um substantivo. Isso juntou-se a uma dúvida minha, surgida durante a leitura dos verbetes: como devem ser pronunciadas essas palavras? Elas têm traços de ortografia inglesa, latina, portuguesa, mas não sei como pronunciar. "Ambiloon" é /ambilun/ ou /ambiloon/? "Ustahan" é /ustaan/ ou /astarren/? E a sílaba tônica, Bráulio, recai onde?