quinta-feira, 8 de julho de 2010

2248) Insônia (22.5.2010)




(xilo: Franz Masereel)

Todo usuário de computador já se viu com uma tela congelada à sua frente, uma tela que não reage a nenhum comando mas que ao mesmo tempo não se apaga, fica ali parada, existindo em vão. 

Todo mundo já se deparou com máquinas defeituosas que a gente não consegue desligar, e que ficam funcionando até gastarem toda a energia que as alimenta. 

É mais ou menos isso que acontece com nossa mente durante uma crise de insônia. O corpo está exausto, a mente pede pelo-amor-de-Deus para adormecer; mas uma parte dela própria entrou num “loop”, num círculo vicioso que se recusa a ser descontinuado. Noventa por cento de nosso cérebro já entregou os pontos, mas o restante é uma ponta de iceberg que se recusa a afundar.

Borges disse que seu conto “Funes, o Memorioso” é “uma vasta metáfora da insônia”. Funes é um rapaz de 19 anos que leva uma pancada na cabeça por acidente e desde esse dia fica, como alguns pacientes do Dr. Oliver Sacks, com acesso à memória total de tudo que lhe aconteceu. Lembra tudo com exatidão absoluta, e por lembrar tudo é incapaz de parar de pensar. A cabeça pensa sozinha, reconstituindo fragmentos de milhões de minutos vividos, associando imagens e idéias, comparando milhões de lembranças... 

Não é um computador travado, é um computador funcionando sozinho, como um cavalo que não obedece mais ao cavaleiro e galopa sem parar.

Dormir, para Funes, era quase impossível. Diz Borges: 

“Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas no catre, na sombra, configurava cada fenda e cada moldura das casas que o rodeavam. Ao leste, num trecho não demarcado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava pretas, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção voltava o rosto para dormir. Também costumava imaginar-se no fundo do rio, embalado e anulado pela corrente”. 

 Confesso que quando a luz do juízo teima em ficar acesa, a lembrança dessas frases, lidas aos 22 anos, me consola, e obedecer a sua sugestão me anula e me adormece.

A escritora Fran Leibowitz disse que “a vida é algo que acontece quando você não consegue pegar no sono”. Esta frase tem um mistério que a de Borges (cartesiana e de implacável racionalidade, mesmo descrevendo um fato impossível) não alcança. 

Pode significar que a vida é irredutível, não dá o braço a torcer, não precisa e não depende da nossa consciência para continuar existindo. E me lembra a frase involuntariamente cruel de John Lennon, “a vida é o que lhe acontece quando você está ocupado fazendo outros planos”, de uma canção que ele lançou meses antes de ser assassinado. 

Lennon foi também um insone famoso, como cantou em “I’m so tired”: “Estou tão cansado que não consigo dar um cochilo”. Existe algo de aterrorizante nesse mundo real que se rebela contra nós, que se recusa a ser diluído pelo sono, que nos trata com a indiferença de um drogado, um mundo que nos diz, “durma, se quiser, morra, se quiser, eu não preciso de você para continuar existindo”.






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