domingo, 25 de abril de 2010

1955) As dívidas de honra (14.6.2009)




(Mark Felt)

Num artigo em meu blog (“Garganta Profunda”, 4 de agosto de 2005) discuti a questão ética enfrentada por dois norte-americanos que ajudaram a derrubar o corrupto governo Nixon: Mark Felt, o diretor do FBI que repassou à imprensa informações secretas sobre o caso Watergate (e ganhou o apelido “Garganta Profunda”, porque na época ninguém sabia de sua identidade) e o ex-funcionário do governo Daniel Ellsberg, que se convenceu do erro militar e ético que era a Guerra do Vietnam e divulgou os famosos “Papéis do Pentágono”. 

O que têm eles em comum? Apenas o fato de que são traidores. Traíram seus patrões, traíram seus colegas de profissão e companheiros de trabalho, mas o fizeram em nome de princípios que, para eles, estavam acima da dignidade profissional.

Existirá algum princípio moral absoluto, superior a todos os outros? No caso de Felt e Ellsberg o que os levou à delação e à traição (que em tese estão entre os atos mais vergonhosos) foi a convicção moral de que rebaixando-se dessa forma estavam se sacrificando por uma causa nobre. 

É o mesmo princípio em que se baseia o “Disque Denúncia” usado hoje no Brasil para combater o tráfico de drogas e o crime organizado. 

É o mesmo que a Rússia estalinista usava, incentivando as crianças a delatarem os próprios pais se os vissem envolvidos em atividades anti-comunistas. 

Estou enfileirando na mesma prateleira (dirão alguns) coisas muito diferentes; mas o gesto é o mesmo. E o termo vil, cheio de vergonha, é o mesmo: judas, calabar, traíra.

Em seu livro Borges, Adolfo Bioy Casares cita (p. 738) um comentário do escritor argentino: “Kant dizia que nunca se deve mentir. Seu exemplo é de que se uma pessoa que pretende matar um homem pergunta se ele passou por aqui, devemos dizer a verdade, mesmo que a consequência disto seja uma morte”. 

É uma espécie cega de honestidade a que eu chamaria de “honestidade autista”, uma condição incapaz de comparar duas opções morais. Assim como se diz que uma criança autista interpreta literalmente o que ouve e não percebe segundas intenções (humor, ironia, etc.) quem age assim não percebe que não existem verdades absolutas nem compromissos absolutos com a verdade. 

Borges ironiza: “Claro, Kant era o homem mais inteligente do mundo, o mais sutil, etc.”

À página 846, Borges fala sobre dívidas de honra. Dá o exemplo de um homem que após uma noite de jogatina num clube de Buenos Aires perdeu tudo que tinha. No dia seguinte, recusou-se a pagar a dívida porque “não podia jogar na miséria sua mulher e seus filhos por causa do capricho de uma noite”. 

Esse indivíduo, diz Borges, “foi olhado por todos com horror, como se fosse um leproso, mas ninguém pensava que pior do que ele agia o que tinha ganho no jogo” (e insistia em cobrar a dívida). Para os que estavam em volta, “não observar as dívidas de honra seria cair no anarquismo”. 

Se queremos conhecer alguém basta saber qual é a última instância moral que ele se recusa a infringir.








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