sábado, 23 de janeiro de 2010

1561) O cinema de Fellini (14.3.2008)


Fellini define seu próprio cinema com lucidez quando expõe o seu método, um método intuitivo e arriscado, que já resultou num número igual de obras-primas e de filmes desconchavados: “O cinema é como o circo: uma mistura exata de técnica, precisão e improviso. Quando aquele espetáculo minuciosamente ensaiado ocorre diante do público, ainda estamos correndo riscos, ou seja, aquilo faz parte da vida. Gosto dessa maneira de criar e viver ao mesmo tempo, sem as limitações que são impostas a um escritor ou a um pintor: mergulhando de cabeça na ação”.

Observe-se que nessa definição do seu cinema Fellini não está se referindo apenas ao momento em que o filme é projetado para a platéia. O cinema, para ele, é o momento da filmagem, aquele momento mágico em que tudo está previsto e ainda assim tudo pode acontecer. Para Fellini, um homem emotivo, extrovertido, gregário, rodar uma cena devia ser um equilíbrio permanente entre as imagens rabiscadas num “storyboard” e o acúmulo de imprevistos e contratempos que se abate sobre uma equipe, mesmo nas condições controladas de um grande estúdio.

Conta-se que 8 ½ surgiu de uma crise de Fellini no primeiro dia de filmagem de um roteiro qualquer, quando ele meteu os pés, furioso, e disse: “Chega! Eu já fiz esse filme! Vou fazer outra coisa completamente diferente!” E então entrou no estúdio e começou a improvisar. O resultado foi o seu filme mais pessoal e mais surpreendente. Neste aspecto, Fellini é o contrário de diretores como Hitchcock e Buñuel, que colocavam toda a sua emoção criativa no roteiro, e durante a filmagem dos planos ficavam bocejando, cochilando, olhando o relógio. Para Fellini, filmar era um raro prazer, e é esse prazer que ele consegue transportar para o resultado que passa na tela.

Um bom exemplo do cinema de Fellini é a última seqüência de Roma: um grupo de motoqueiros, à noite, cruzando a toda velocidade as ruas desertas da capital. Documentário? Ficção? Não sei. Fellini pode estar registrando “in loco” um hábito dos motoqueiros romanos. Pode também conhecer esse hábito e o estar encenando com seus próprios atores e motos alugadas. E pode simplesmente ter tido (por conta própria) a idéia de que seria bonito ver as ruas desertas da Cidade Eterna sendo percorridas por esses cavaleiros futuristas, com rostos ocultos atrás de óculos e capacetes. Sob o rugido incessante e imutável dos motores, as luzes das motos em movimento fazem girar sobre a fachada dos edifícios das praças as sombras gigantescas das estátuas. Lembra o texto de Cortázar (nas Histórias de Cronópios e Famas) em que ele diz existir um ponto, numa praça em Roma, onde à lua cheia vêem-se mover-se as estátuas dos Dióscuros, que tentam dominar seus cavalos rebeldes. Esse ponto é a câmara de Fellini: sob a luz dos faróis de seus motociclistas fantasmas, as sombras do Passado põem-se em movimento sob as luzes do Presente. “E pur si muove”.

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