segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

1539) Munevada glimou vestassudente (17.2.2008)



Num número recente da revista
Língua Portuguesa (n. 26, de 2007) o poeta Eucanaã Ferraz contribui com uma excelente análise da poética de Vinícius de Moraes. 

O foco de Eucanaã é nas inovações lingüísticas de Vinicius, e boa parte de sua análise é centrada num dos meus poemas favoritos: “Sombra e Luz”, um delírio surrealista que li aos 10 anos de idade e que bouleversou meus conceitos do que era poesia, que até aquele período flutuavam em torno de Olavo Bilac, Castro Alves, etc. “Sombra e Luz” é um exercício de livre associação de idéias, de imagens, de vocábulos. 

A certa altura, diz Eucanaã: 

“Todo esse jogo chega a seu ponto culminante no verso que abre a segunda parte do poema: ‘Munevada glimou vestassudente’. Trata-se de uma língua estrangeira? Será um código? Como decifrá-lo? Depois de relutarmos contra a presença de um conjunto de signos vazios, resignamo-nos e deixamos de lado nosso impulso racional”. 

O verso de Vinícius é uma citação ao conto de Jorge Luís Borges “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, onde ele imagina um mundo paralelo ao nosso, cuja filosofia e linguagem se baseiam no idealismo, e não no materialismo. Ou seja, as idéias são mais reais do que o mundo físico, o qual muda arbitrariamente para adaptar-se a elas, ao contrário do que ocorre em nosso mundo. 

A certa altura, tentando explicar a língua de Tlön, diz Borges (Nova Antologia Pessoal, Ed. Sabiá, 1969, trad. Maria Julieta Graña e Marly de Oliveira Moreira): 

“Não há substantivos na conjetural Ursprache (língua primordial) de Tlön, da qual procedem os idiomas 'atuais' e os dialetos: há verbos impessoais, qualificados por sufixos (ou prefixos) monossilábicos de valor adverbial. Por exemplo: não há palavra correspondente à palavra ‘lua’, mas há um verbo que seria em espanhol ‘luezer’ ou ‘luar’. ‘Surgiu a lua sobre o rio’ diz-se ‘hlör u fang axaxaxas mlö’, ou seja, em ordem: para cima (upward) atrás duradouro – fluir luezeu. (Xul Solar traduz brevemente: upa tras perfluye lunó. Upward, behind the onstreaming it mooned”. 

Este conceito de uma linguagem sem substantivos, apenas com verbos, é um desafio desconcertante. (Xul Solar era um pintor meio surrealista amigo de Borges, e seu palpite certamente é verídico.) 

Foi certamente isto que motivou Vinícius a engendrar seu verso. “Munevada” é “lua (moon) cor de neve”. “Glimou” vem do verbo inglês “to gleam”, brilhar, cintilar. “Vestassudente” indica uma direção, através da palavra francesa “vers” (=na direção de), e “sudente” decerto indica o Sul. 

Não pode ser coincidência. O poema de Vinícius é dos anos 1950 (conheci-o na antologia da Editora Sabiá, que é de 1960). Nessa época, Borges já era famoso em Buenos Aires, e uma parte substancial dos seus textos tinha sido traduzida na França, graças ao entusiasmo de admiradores como Roger Caillois. 

Me parece óbvio que Vinícius leu “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” (ou algum comentário do conto que transcrevia o texto citado acima) e, como qualquer sujeito que gosta de brincar com palavras, tentou uma tradução pessoal da frase.








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