segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

1503) O peixe e a pescaria (6.1.2008)


(ilustração: Julie Paschkis)

Todo mundo conhece aquela frase: “Se um homem está com fome, melhor do que dar-lhe um peixe é ensinar-lhe a pescaria”. Claro que depende das circunstâncias – se o sujeito está desfalecendo de fome e mal pode se mover, dar-lhe um prato de comida pode ser mais importante, num primeiro momento, do que oferecer-lhe um emprego. Esse processo reproduz mais ou menos o que fazemos com nossos filhos. Assim que nascem começamos a dar-lhes tudo: alimentação, cuidados médicos, carinho, educação. Aos poucos, vão adquirindo habilidades, responsabilidades, desenvoltura. Até que chega o dia em que consideramos que eles já sabem pescar, e os abraçamos, dizendo: “Vai, meu filho! Vai, minha filha! Voa alto, porque tuas asas já estão prontas e fortes!” (Problema é que essa cena tão bonita nunca acontece – são eles que decidem por conta própria cair fora, e somos os últimos a ficar sabendo).

Isto me vem à mente quando, por inusitado que pareça, estou vendo certas manifestações artísticas de qualidade constrangedoramente ruim. São os versos tatibitates da poetisa jovem, são os vídeos caóticos do aprendiz de cineasta, são as músicas banais do recém-compositor de MPB, são as peças de teatro estudantis que não passam de uma sucessão de clichês recitados com voz pomposa e postura rígida. O que devemos fazer diante disso? Encorajar? Criticar? Mandar mudar de vocação?

Talvez nessas horas a gente deva distinguir entre duas atitudes. Devemos perguntar: “Essa pessoa está me oferecendo um peixe que pescou. O que é importante, o peixe ou a pescaria?” Quando o jovem artista está ainda procurando seu caminho, devemos deixar de lado a qualidade do peixe, porque não é ele que conta. O peixe pode ir para o lixo, se não prestar, como é para o lixo que vão nossos rascunhos insatisfatórios, nossas cenas mal filmadas, e assim por diante. O produto é o que menos importa, porque ali se trata de um processo de aprendizado, de uma pescaria onde só conta a educação do pescador.

O problema é quando esses trabalhos já se dão dentro de um contexto profissional ou oficial, num contexto em que se pressupõe que o sujeito já é capaz de produzir obras ou trabalhos ao nível dos que constituem o que uns chamam O Mercado, mas que podemos chamar (atenuando o aspecto mercantilista da coisa) de A Cena Cultural – o ambiente em que obras são exibidas a sério e apreciadas pra valer. Aqui, parte-se do princípio de que o pescador já está pronto, e o que passa a ter importância é a qualidade do peixe que ele fornece. Um filme exibido num cinema, um romance enviado a uma editora profissional, uma peça que reserva pauta num teatro, um show que cobra ingressos – tudo isto deixa subentendido que seus autores não estão mais aprendendo a pescar. A benevolência que poderíamos ter para com suas limitações ou seus erros se dilui no momento em que eles nos tentam, literalmente, vender seu peixe.

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