sexta-feira, 17 de julho de 2009

1154) O soco de Anselmo (24.11.2006)



Há 25 anos, em novembro de 1981, o Flamengo conquistou a Taça Libertadores das Américas, e partiu ainda quente desta conquista para decidir o título de Campeão do Mundo no Japão, onde aplicamos um modesto 3x0 no Liverpool, placar que bem poderia ter sido o dobro. Mas é da decisão da Libertadores que quero falar. Há um herói dessa conquista que é mais lembrado do que o craque Zico, o técnico Carpeggiani, o goleiro Raul, o artilheiro Nunes. Sim, amigos, estou me referindo a Anselmo. Todo torcedor do Flamengo sabe quem é este obscuro atacante, que nunca fez nenhum gol memorável, nunca foi titular absoluto, e que passou à História simplesmente como “o cara que deu o murro em Mário Soto”.

O Flamengo decidiu aquela Libertadores contra o Cobreloa, do Chile. Venceu o primeiro jogo no Maracanã por 2x1. O segundo jogo foi em Santiago, e lembrem-se que o Chile estava no auge da ditadura de Pinochet. Violência militar e tortura mantinham o país sob pressão. O Cobreloa era um time sem tradição, fundado em 1977, e representava a região das minas de cobre chilenas. Havia muito dinheiro envolvido e o time queria ganhar o título na marra. O jogo em Santiago foi um dos mais violentos da história, e dois jogadores do Flamengo ficaram inutilizados para o jogo seguinte (Lico com um corte profundo na orelha, e Adílio com um ferimento no olho). O Cobreloa ganhou por 1x0, e o jogador Mario Soto liderou o massacre físico contra o Flamengo. Reza a lenda que ele agredia os jogadores brasileiros durante o jogo com uma pedra no punho fechado.

O jogo decisivo foi em Montevidéu, campo neutro. O Flamengo fez 2x0 e no último minuto Carpeggiani tirou Nunes e colocou Anselmo em campo, com uma instrução: “Vai lá e dá um soco nele”. Anselmo foi para perto de Mario Soto e, na primeira bola que veio, quebrou a cara do chileno com um murro, foi expulso, e o jogo acabou.

Hoje quarentão, vivendo em Portugal, Anselmo diz: “A mim coube o trabalho sujo, e não serve como exemplo. Poderia ser lembrado como artilheiro dos juniores. Sempre fui do bem e acabei conhecido como maluco e brigão. Depois, no hotel, ao telefonar para casa, crente que era o tal, levei a maior bronca do meu pai. Hoje, minha mãe diz que fiquei conhecido pelas mãos e não pelos pés”.

Este episódio exprime uma contradição insolúvel do futebol e da vida. Todos nós temos discursos humanistas e politicamente corretos em favor do espírito esportivo e do sentimento cristão. Mas quem sofre uma agressão covarde não esquece. Futebol é arte, balé, xadrez, mas é um jogo viril e abrutalhado em que façanhas como a de Anselmo refletem o alto grau de testosterona e de agressividade primitiva que nos leva a correr atrás da bola. Nosso lado civilizado homenageia aqueles que descartam a vingança física e se contentam com dar o troco na bola e no placar. Mas dentro de cada fã do futebol existe um brutamontes-mirim que não resiste à poesia de um murro bem dado.

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