A revista Beijo foi uma daquelas inúmeras revistas alternativas que, nos tempos da ditadura, brotavam por todos os lados, mais rapidamente do que a Censura conseguia matá-las por asfixia. A cada uma que morria surgiam duas. Curiosamente, depois que a ditadura militar foi substituída pela Democracia Eletrônica de Marketing e pela Ditadura do Consumo Conspícuo, essas revistas deixaram de existir. Não são mais contra, sonhavam para o futuro isto que está aí? Como saber?
Na revista Beijo li nos anos 1970 um artigo cujo autor não recordo, mas a quem tiro o chapéu. Todas as vezes que estou com amigos conversando sobre rock, surge de novo um velho argumento: nós, velhinhos transviados, não temos o direito de criticar as bobagens ditas e feitas pelo rock brasileiro. Porque no nosso tempo era a Jovem Guarda, e existe coisa mais banal do que letra, harmonia, melodia, ritmo, arranjo e interpretação vocal da Jovem Guarda? Para estes argumentantes, o rock brasileiro teve seus primeiros vagidos quase inaudíveis com o iê-iê-iê de Celly Campello, o “Broto Legal”, e seus contemporâneos Sérgio Murilo, Tony Campello, Sônia Delfino, Ronnie Cord... Eram musiquinhas inconseqüentes, das quais a mais “juventude transviada” eram as que diziam coisas como “Entrei na Rua Augusta a 120 por hora / botei a turma toda do passeio pra fora...” Esses eram os bad-boys da época.
Depois, claro, veio a Jovem Guarda de Roberto & Erasmo, Wanderléa, Renato e Seus Blue Caps, Jerry Adriani, Golden Boys... Nos anos 1970 houve um hiato em que os nomes roqueiros eram escassos. Contavam-se nos dedos, mas eram todos de peso: O Terço, A Bolha, Raul Seixas, Rita Lee. E por fim, nos anos 1980, começou o que chamamos na imprensa de BRock, com Blitz, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Titãs, Barão Vermelho e todo o resto.
Pois bem. A teoria do articulista da Beijo, pelo que lembro, já desmontava por antecipação (a revista era de 1972, por aí) toda esta árvore genealógica. Para ele, o equivalente brasileiro ao rock americano era a bossa-nova, e não a Jovem Guarda. Por que? Ora, o rock era um processo de apropriação de um tipo de música negra (o blues e seus derivados) por músicos brancos que o eletrificaram, o pasteurizaram (retirando a maior parte de seus subentendidos sexuais), deram-lhe uma fisionomia mais “família” e conseguiram projetá-lo para o sucesso. Claro que depois, com o bloco na rua, a brava gente bronzeada pegou de volta o que era seu e o rock voltou a ser politizado, sexualizado, agressivo.
A Bossa Nova fez o mesmo com o samba. Pegou uma música negra, da favela, e a transportou para um cenário de jovens de classe média urbana, destilando ao máximo e resumindo ao mínimo sua essência percussiva (a batida de João Gilberto), branqueando-a socialmente, poeticamente, mercadologicamente. A mesma dinâmica de apropriação que houve com o rock nos EUA.
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