sexta-feira, 8 de maio de 2009

1014) O paranóico (16.6.2006)



Conheci um cara que não perdia um evento na Academia Brasileira de Letras: conferência, lançamento de livros, etc. Todo coquetel lá estava ele, no seu terno puído mas impecável. Era um senhor cordato, de razoável leitura, sempre com a testa franzida para indicar (creio eu) profundidade de pensamento. A princípio, imaginei que era amigo dos acadêmicos, porque sempre se referia a eles com certa intimidade. “Olha ali o Ledo Ivo... Ontem mesmo falei pra ele: seu último livro é o melhor de todos”. “Tá vendo ali a Lygia? Puxa, como ela está elegante... Tá vendo? Acenou pra mim!” Claro. Se a gente olha três vezes para alguém num coquetel e a pessoa está sorrindo na nossa direção, qualquer um acena.

Descobri que ele era um escritor inédito aos 65 anos, e um paranóico inofensivo. A idéia fixa dele era que todos os acadêmicos viviam insistindo para que ele se candidatasse, e ele não o fazia “porque ainda não era o momento”. Qualquer frase, qualquer olhar, qualquer cumprimento servia-lhe de confirmação, com carimbo e firma-reconhecida, sacramentando sua teoria. Estávamos bebericando vinho branco, aí o acadêmico Fulano se aproximava: “Boa noite, vamos passar para o outro salão, a conferência vai começar, obrigado” Quando se afastava meu amigo me confidenciava: “Veio falar na candidatura, mas você estava aqui e ele deve ter achado que não pegava bem”.

Muita gente pensa que o paranóico é o sujeito que acha que está sendo perseguido e ameaçado por alguém (a CIA, o PCC, os marcianos). Este é o paranóico negativo. Existe também o paranóico do pensamento positivo, o que interpreta erradamente, e em em seu favor, tudo que vê. Serve-se disto para compensar uma auto-estima deformada e para acalentar uma ilusão natimorta. Artistas pop, que vivem da super-exposição, vivem sendo assediados por fãs que julgam ler mensagens pessoais ocultas nas letras das músicas. Obscuros vereadores do interior apertam um dia a mão do Presidente da República e daí em diante passam a ver em cada pronunciamento de Sua Excelência uma referência velada às duas ou três frases que trocaram num aeroporto.

O paranóico positivo deixa-se arrebatar por leituras (Dom Quixote, Madame Bovary), ou deixa-se seduzir pela glória alheia e cria uma fantasia onde faz parte dela. Familiares e amigos têm às vezes uma parcela de culpa, porque movidos pelo afeto dão asas ao delírio: “É isso mesmo! Vá lá! Siga sua lenda pessoal!” A lenda pessoal de uns os leva a desfechar cinco tiros no peito de John Lennon; a de outros, a tirar a roupa e correr nu na festa do Oscar. A grande maioria dos paranóicos, felizmente, é “do-bem”, como o meu amigo quase-acadêmico. Eu só queria saber, no entanto, como é que onze paranóicos com ilusão de grandeza conseguem agrupar-se num mesmo clube de futebol (no caso, o Flamengo), todos eles achando (por influência da família e da imprensa) que sabem jogar futebol, quando, visivelmente, não sabem.

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