segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

0717) Os materiais da vida (6.7.2005)





O que fazer, quando a gente se depara com um poema que não entende? Se é um poema lido ao acaso, e assinado por um zé-das-couves qualquer, basta esquecer e passar adiante (v. “O poema incompreensível”, 29.10.2004). 

É bem possível que o autor também não tenha a menor noção do que é aquilo, e só o fez para posar de sabichão na frente das moças. Mas o que fazer quando, no meio de um livro de um poeta que admiramos, e cuja escrita julgamos conhecer bem, aparece uma coisa insolúvel?

Tinha eu uns dezesseis anos quando me deparei com o poema “Os materiais da vida”, numa antologia de Drummond, a quem eu já considerava, em pleno deslumbramento da descoberta, o maior poeta de todos os idiomas. O poema diz: 

“Drls? Faço meu amor em vidrotil 
nossos coitos serão de modernfold 
até que a lança de interflex 
vipax nos separe 
em clavilux 

camabel camabel o vale ecoa 
sobre o vazio de ondalit 
a noite asfáltica 
plkx." 

Minha lua-de-mel com o poeta foi gravemente comprometida por este texto, que em matéria de pedra-no-meio-do-caminho era um verdadeiro rochedo de Gibraltar. Mas vejam: sou agnóstico em religião, mas em literatura sou um fundamentalista, cheio de fé. Eu sempre acho que o escritor disse alguma coisa fantástica, eu é que sou burro e não estou pegando o espírito-da-coisa.

Acho que o poema é uma sátira um tanto amarga à nossa vida cheia de materiais sintéticos, industriais, e às palavras igualmente sintéticas, fabricadas, com que eles são batizados. 

Lendo esses nomes vêm à nossa mente uma porção de sonoridades parecidas, todas elas de marcas registradas: eucatex, tergal, pirex, trifil, eternit, brilux... Está tudo nos comerciais de revistas e TV. 

Está tudo espalhado por toda parte, e essas substâncias produzidas em laboratório, que invadiram nossos lares após a II Guerra Mundial, produzem um compreensível susto num poeta de origem provinciana, acostumado a substâncias milenares como madeira, vidro, louça, pano, metal.

A ironia do poeta se manifesta em sutilezas como “nossos coitos serão de modernfold” (que sugere “moderno” + “foda”), ou em chamadas melodramáticas como “camabel camabel o vale ecoa”, como se escutássemos um alto-falante cósmico bradando-nos as virtudes de algum tipo de mobiliário. 

Restam duas palavras enigmáticas: “drls” e “plkx”, as que abrem e fecham o poema. Chegando aí, meus amigos, eu só acerto na trave. A primeira me sugere o nome da esposa do poeta, que era “Dolores”; o segundo pode ser a expressão caótica de um esgotamento da linguagem, de uma incapacidade em articular, de uma situação do tipo “não tenho palavras para expressar isto”. 

Ferreira Gullar tem um poema famoso, “Roçzeiral”, da mesma época, onde chega a esse auto-estilhaçamento da linguagem: 

Au sôflu i luz ta pom- 
pa inova’ 
orbita 
FUROR 
tô bicho
’scuro fo- 
go 
Rra” 

Não tentemos espremer todas as gotas de significado de textos assim. O próprio autor, visivelmente, tentou e não conseguiu.







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