sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

0712) Livro dos Homens (30.6.2005)



Livro dos Homens de Ronaldo Correia de Brito (Cosac Naify, 2005) prolonga o livro anterior do autor pela mesma editora, Faca. São duas coletâneas homogêneas que podem ser vistas como um só livro, até pelo fato de que o segundo conto de um (“Faca”) tem sua história retomada no primeiro conto do outro (“O que veio de longe”). São contos que se passam no Nordeste, tanto no sertão das grandes casas senhoriais das fazendas de gado quanto nas pequenas vilas; há histórias ambientadas no século 19, e outras que são contemporâneas do rádio e do cinema.

Os contos destes livros trazem de volta a velha questão sobre a diferença entre literatura regional e literatura universal. Não é questão que se resolva numa lauda, e não tentarei. Quero apenas apontar alguns sintomas. A literatura regional tem sempre um impulso documental, etnográfico. Pretende ser um registro de formas típicas de viver, de usar, de falar. Autores regionalistas se esmeram em reproduzir sotaques, palavreado, usos e costumes; descrevem detalhes típicos de mobiliário, vestimenta, alimentação, transporte; recenseiam flora e fauna; registram didaticamente as atividades dos “ciclos econômicos” (cana-de-açúcar, cacau, café, gado, pescaria, etc.); preservam para os séculos futuros a memória de ritos religiosos, festas, eventos coletivos de trabalho e de lazer. Existe por trás disto um sentimento (que considero necessário) de preservação da memória de um modo de vida, e muitas vezes é esta faceta que prolonga a existência de obras cuja estatura literária não é grande coisa. (Paciência, beletristas – nem só de arte literária é feita a cultura de um povo)

O Nordeste dos contos de Ronaldo Brito é um Nordeste despojado dessa exuberância de cenografias e figurinos: seco e áspero, em preto-e-branco, reduzido ao osso e à medula das tragédias humanas. Lembramos que é Nordeste por causa dos nomes próprios e do surgimento eventual de um candeeiro, um carro-de-boi, uma festa popular. Mas tudo isto passa rápido, e nunca em primeiro plano. É o sertão do Ceará, mas poderia ser a Armênia, o México, a Grécia dos filmes de Cacoyannis, a Espanha de Buñuel ou a Rússia de Tarkovski.

Penso que o perigo do “regionalismo” é tender ao epidérmico, ao descritivo, ao superficial; e que por outro lado o perigo do “universalismo” é tender ao mediano, ao repetitivo, ao que-se-encaixa-em-todo-mundo. Estes dois extremos são evitados nos contos de Ronaldo Brito, principalmente por uma grande economia verbal onde cada frase parece um corte cinematográfico mostrando-nos apenas fragmentos de uma ação cujo restante tem que ser deduzido ou imaginado. Quem quer ver ali o Nordeste o encontra, porque ele está todo ali, impregnado em cada corte histórico ou social. Mas um leitor húngaro, texano ou palestino irá encontrar ali situações humanas que parecem ao mesmo tempo remotas e familiares, como quando um episódio da Bíblia ocorre dentro da nossa própria casa.

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