terça-feira, 12 de agosto de 2008

0506) Um navio com velas tatuadas (2.11.2004)



“Uma praia onde os cachorros ladram para navios com velas tatuadas”, diz uma canção de Bob Dylan. Tatuagens são uma das nossas formas de martirizar o próprio corpo, transformá-lo em superfície, em suporte, em papel onde se escrevem mensagens. A auto-mutilação, por exemplo (ver “Limbo: a guerra ao corpo”, 6.9.2003), é apenas uma forma radical dessa atitude de considerar o corpo algo que pode sofrer intervenções para ganhar mais significado.

O que é a maquilagem, por exemplo, senão uma forma branda dessa mania de escrever e pintar coisas sobre si mesmo? Há milhares de anos que o uso de cremes coloridos facilmente removíveis é usado como um equivalente mais “light”, mais suavizado, do uso de cortes e cicatrizes rituais que definem papéis sociais ou religiosos. A maquilagem é o território de mensagens efêmeras; a tatuagem é um gesto radical, um recado que dura para sempre.

É essa permanência cruel da tatuagem que, penso eu, a deixa tão em moda entre os jovens. Toda vez que uma moda pega, podem ir atrás que ela corresponde a uma vontade oculta no juízo desses milhões de pessoas. Fico besta quando vejo um monte de rapazes e moças de vinte anos enchendo os braços, o peito e as costas com dragões chineses, galeões espanhóis ou guitarras heavy-metal. Fico pensando: “E daqui a 40, a 50 anos?” Eles não estão nem aí. O jeito é filosofar um pouco e achar que num mundo onde tudo é descartável, etc. e tal, os jovens se fascinam com a possibilidade de alguma coisa durar para sempre. Gostam das decisões irreversíveis. Sentem-se mais radicais, mais decisivos, mais importantes. Tatuar-se é um gesto que “tem atitude”.

Uma cena impressionante no filme O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas, feito em Recife por Paulo Caldas e Marcelo Luna, é quando vemos o músico Garnizé fazendo-se tatuar um rosto de Che Guevara ao lado dos rostos já tatuados de Martin Luther King e Malcolm X, enquanto explica a importância desses heróis para a luta social do hip-hop pernambucano. A tela é coberta por uma superfície uniforme de pele morena, que a agulha elétrica corrói, injetando tinta por cima do esboço, recriando a imagem de Guevara com a boina e o cabelo ao vento. É uma cena que dá significado literal à expressão “sentir na própria pele”; e é um manifesto político capaz de fazer ruborizar um militante que se limita a botar na camisa um “button” do candidato. (Aliás, amiguinhos, é “button”, que se escreve; “bottom” quer dizer “bunda”.)

O gesto radical de tatuar para sempre a própria pele pode parecer exagerado a alguns. Mas se nossas mentes fossem tão visíveis quanto nossos corpos, veríamos que elas não passam de uma superfície riscada por milhões de cicatrizes, impressa com milhões de mensagens e comandos que vão muito mais fundo do que a tinta vai na epiderme. Tatuar-se é trazer para fora o que somos por dentro: um muro onde o Governo afixa placas e a vida cobre de grafittis.

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