sábado, 18 de novembro de 2023

5003) O método científico e o absurdo (18.11.2023)

 
 
A Ciência pode ser vista como um conjunto de procedimentos que se vigiam e se corrigem mutuamente. Um desses procedimentos, por exemplo, é a experimentação direta: não adianta conceber a hipótese mais fascinante; é preciso testá-la no mundo “daqui de fora”, fora dos livros, fora das palavras, fora das fórmulas.  
 
Outro procedimento é o da diversidade de observadores: o resultado que eu obtive deve ser o mesmo que é obtido por outros observadores. Uma coisa que somente eu percebo não pode ser base científica para nada. 
 
Outro procedimento que a Ciência emprega, e nisto se faz parceira da Filosofia, é o emprego de conexões lógicas entre os fatos. Aqui é um terreno mais escorregadio, porque os filósofos têm o hábito (muito saudável, aliás) de procurar brechas e inconsistências nos argumentos dos colegas. E, por isto mesmo, acabam produzindo argumentos mais sólidos e precisos. 
 
A Lógica é um desses instrumentos, e serve de apoio às investigações científicas. O silogismo é uma fórmula simples que todo mundo já viu por aí: 
 
a.       Todos os homens são mortais.
b.       Ora, Sócrates é um homem.
c.       Portanto, Sócrates é mortal.
 
Quando aplicadas à vida prática, estas fórmulas precisam corresponder à verdade observável na vida prática. É neste ponto que alguns espertos turvam as águas e nos forçam a aceitar resultados absurdos, simplesmente porque nos jogam no colo uma premissa falsa... e nós não a questionamos : 
 
a.       Todos os escritores são bêbados.
b.       Ora, Charles Bukovsky é um escritor.
c.       Portanto, Charles Bukovsky é um bêbado.
 
Parece verdade, mas infelizmente (ou felizmente) o ítem “a” não é uma verdade demonstrável.
 
Nessas demonstrações lógicas, é a forma que conta. Se cada afirmação for factualmente correta, o raciocínio é sempre o mesmo. 
 
a.       Todos os gugurinos são travões.
b.       Ora, o manipanso-mor é um gugurino.
c.       Portanto, o manipanso-mor é um travão.
 
O raciocínio é correto; pouco importa se os termos são absurdos. 
 
Esse bê-á-bá da Filosofia é essencial para o raciocínio científico. Curiosamente, tem a ver com muitas proposições da Matemática, que um dia alguém descobre e sistematiza sem saber para que serve (são meros cálculos numéricos ou geométricos), e cinquenta anos depois alguém descobre que esse tipo de raciocínio pode ser aplicado com perfeição a partículas sub-atômicas ou a reações químicas. 
 
O interessante dessas proposições é que elas dão espaço para uma mistura totalmente incongruente (e divertida) entre o rigor filosófico e o nonsense. Se a relação entre os elementos é lógica, não importa se os elementos em si são absurdos. 


(Hubert Phillips, "Caliban")
 

Hubert Phillips (1891-1964), conhecido como “Caliban”, manteve durante anos algumas colunas de quebra-cabeças matemáticos e lógicos em publicações como o Daily Telegraph, New Statesman, The Nation e outros. Muitos desses problemas foram reunidos no livro My Best Puzzles in Logic and Reasoning  (New York: Dover, 1961).
 
Entre eles está o divertido problema intitulado “Pickled Walnuts”, que ele descreve como “um daqueles exercícios em inferência que tanto fascinavam Lewis Carroll”. É uma série de proposições (que devem ser aceitas a priori como verdadeiras – ou seja, não há trapaça) envolvendo situações e personagens meio surrealistas, das quais pode ser extraída alguma conclusão lógica. 
 
Fiz uma tradaptação (tradução + adaptação) do problema, mantendo o rigor das proposições.
 
·         Cerveja Stella Artois é servida sempre nas reuniões sociais do Dr. Frankenstein.
·         Nenhum torcedor que não prefere o Barcelona ao Real Madrid pega, jamais, um táxi na Cinelândia.
·         Todos os morcegos sabem tocar sanfona. 
·         Nenhum animal pode ser registrado como enólogo se não levar consigo um iPhone. 
·         Qualquer animal capaz de tocar sanfona pode ser eleito para o Clube dos Alquimistas Amnésicos. 
·         Somente animais registrados como enólogos são convidados para as reuniões sociais do Dr. Frankenstein.
·         Todos os animais que podem ser eleitos para o Clube dos Alquimistas Amnésicos preferem o Real Madrid ao Barcelona.
·         Os únicos animais que saboreiam cerveja Stella Artois são aqueles que a experimentam nas reuniões sociais do Dr. Frankenstein.
·         Somente animais que pegam táxi na Cinelândia levam consigo um iPhone.
 
Qual a conclusão que pode ser extraída?
 
Quem quiser ver a versão original do problema, e a resposta, pode acessar aqui, e ver a “Solução ao Problema #43”: 
 
https://gizmodo.com/theres-a-star-hiding-in-this-image-can-you-find-it-1724344803
 
O que significa isto, para além do lado de humor “lewiscarrolliano”? 
 
Significa que o pensamento científico, armado com os instrumentos da lógica filosófica, pode chegar a conclusões satisfatórias mesmo quando lida com elementos indefinidos, desde que essa ação de “lidar” tenha uma lógica própria, que essa lógica seja coerente, e que possa conduzir sempre aos mesmos resultados, quando é seguida à risca. 
 
 Grande parte da solidez no método científico (sempre, em casos assim, de-parelha com a filosofia) não depende da natureza dos elementos que manipula, mas do rigor das regras dessa manipulação. É como dizer: “Três laranjas mais cinco laranjas é igual a oito laranjas”. Não importa se são laranjas, abacaxis ou carburadores. Três mais cinco é igual a oito. 

 
 


 
 
 







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