(Gabriel Garcia Márquez)
Escrevi dias atrás sobre o assassinato do primeiro
ministro da Suécia, Olof Palme, ocorrido em 1986. Até hoje não se sabe com
certeza quem foi o homem que o alvejou após a última sessão de um filme, por
volta das 23:30, quando ele se dirigia com a esposa para o metrô.
Palme estava sem a proteção de seguranças. Era um dia
comum de inverno, ruas nevadas e com poucos transeuntes. Um homem o seguiu por
alguns metros. Quando o casal parou numa esquina, o cara chegou mais perto e disparou
um tiro de revólver em cada um. A esposa foi ferida de raspão; Palme morreu
minutos depois.
Aqui, sobre a série:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/02/4797-o-assassinato-de-olof-palme-2422022.html
A série Assassinato
de Olof Palme (Netflix) reconstitui ficcionalmente o caso, denunciando um
suspeito. Um detalhe que chama a atenção desde o início é que havia poucas
pessoas em volta, os depoimentos às vezes se contradiziam, e tudo parecia
beneficiar o criminoso.
Alguém pode pensar: "O melhor momento para um crime como
esse, então, é tarde da noite, rua quase deserta, pouca gente em volta..."
Nem sempre. Me veio logo à lembrança outro assassinato
político famoso e não explicado de forma 100% satisfatória.
Esse crime foi
testemunhado de perto por Gabriel Garcia Márquez, que o reconta em suas
memórias (Vivir Para Contarla,
Bogotá, Editorial Norma, 2002). Infelizmente o livro de Márquez não tem
subdivisão em capítulos, mas os textos que vou citar estão da página 330 em
diante (não tenho em mãos a tradução brasileira).
A Colômbia vivia em 1948 uma campanha presidencial num
momento de extrema tensão e violência política. Márquez lembra uma tourada, em
Bogotá, em que o toureiro demorou tanto a liquidar o touro que a torcida desceu
das arquibancadas e esquartejou vivo o animal.
(Jorge Eliécer Gaitán, 1903-1948)
Um dos protagonistas políticos mais importantes era Jorge
Eliécer Gaitán, líder da oposição de esquerda, que fazia discursos inflamados
contra os opressores, as elites, a violência do governo, etc. No dia 9 de abril de 1948, ele saiu em grupo
para almoçar num restaurante no centro de Bogotá, a pé, cercado por meia dúzia
de amigos e correligionários.
Garcia Márquez tinha nessa época 21 anos e era estudante;
estava almoçando a três quadras dali, na pensão onde morava, quando alguém
entrou correndo e gritou:
– Agora o país se fudeu mesmo! Acabam de matar Gaitán, em
frente a "El Gato Negro".
Márquez saiu voando. No local do crime, homens
agachavam-se, tiravam o lenço e o encharcavam na poça de sangue, para guardar
como souvenir. O agressor havia se refugiado numa farmácia, cujo dono correu as
portas, mas a multidão já fazia de tudo para botá-las abaixo. E Márquez,
olhando tudo, recorda:
Um homem alto e muito senhor de si, com traje cinza impecável, como se
estivesse indo para um casamento, os incitava com gritos bem calculados. (trad.
BT)
GGM tem olho de jornalista e descreve o momento em que o
dono da farmácia, apavorado, entregou à polícia o fugitivo.
Tinha o cabelo revolto, uma barba de dois dias e uma palidez mortal,
com os olhos sobressaltados pelo terror. Seu traje era de pano marrom, de um
tipo muito usado, com listras verticais; a gola já estava rasgada pela
multidão. Foi uma aparição instantânea e eterna, porque os engraxates o
arrancaram das mãos dos guardas a golpes de caixotes e o derrubaram a pontapés.
Nos primeiros sopapos já havia perdido um pé de sapato.
(O crime foi mais ou menos aqui, na esquina de Av.
Jiménez com Carrera 7)
O criminoso foi depois identificado como Juan Roa Sierra,
um indivíduo insignificante do ponto de vista político, um “pawn in their game”
da estirpe de Lee Harvey Oswald. O homem de cinza, sempre próximo, começou a
gritar: “Ao palácio!... Ao
palácio!...” O corpo ensanguentado
do pistoleiro foi arrastado rua afora, e ficou exposto diante do Palácio
Presidencial. Diz o escritor:
O cadáver desfigurado a golpes ia deixando pedaços de roupa e do corpo
nas pedras do calçamento. (...) Ali deixaram o que sobrou do cadáver, sem outra
roupa senão os farrapos da cueca, o sapato esquerdo e duas gravatas
inexplicáveis ao pescoço.
Para mim, são esses pequenos detalhes absurdos que
conferem verossimilhança a um relato. Conheço
o estilo de Garcia Márquez o bastante, e creio que, para ele, inventar um
detalhe assim seria um clichê banal, mas vê-lo no mundo real e registrá-lo é
pura literatura de não ficção. (A segunda gravata é ligeiramente plausível, se imaginarmos que um dos linchadores achou mais prático tirar a própria gravata e usá-la para arrastar o corpo do linchado pelo pescoço.)
E ele relata:
Permaneci no lugar do crime uns dez minutos mais, surpreendido pela
rapidez com que as versões das testemunhas iam mudando de forma e de
conteúdo até perder qualquer semelhança
com a realidade.
Márquez faz um relato cheio de citações. Pessoas presenciaram
o instante em que um correligionário do grupo de Gaitán, Plínio Mendoza Neira,
o tomou pelo braço, quando caminhavam de volta do restaurante, para fazer-lhe
um pedido, e viu quando o candidato ergueu o braço diante do rosto, num reflexo
instintivo de defesa, antes de receber os três tiros na cabeça que o abateram.
E o escritor conclui:
Cinquenta anos depois, permanece nítida na minha memória a imagem do
homem que parecia instigar o populacho em frente à farmácia, e não vi
referências a ele em nenhum dos incontáveis testemunhos que li sobre aquele
dia. Eu o vi muito de perto, elegantemente vestido, uma pele de alabastro e um
controle milimétrico de cada gesto que executava. Tanto me chamou a atenção que
fiquei de olho nele até que o recolheram num automóvel novinho em folha, com a
mesma rapidez com que estava sendo levado embora o corpo do assassino; e desde
então parece que ele foi apagado da memória histórica. Inclusive da minha, até
muitos anos depois, em meus tempos de jornalista, quando me assaltou de súbito
a noção de que aquele homem havia dado um jeito para que matassem um falso
assassino, a fim de proteger o verdadeiro.
No crime de Olof Palme, a polícia sueca montou maquetes
com bonequinhos, reconstituindo os passos da meia dúzia de pessoas que estavam
naquele pedaço de quarteirão quase deserto. Nem isso lhe valeu. Já na morte de
Gaitán, a polícia da Colômbia chegou ao local do crime segundos depois, mas o
tumulto era tal que até hoje ninguém conseguiu deslindar as pistas. E o fato de
que o possível criminoso foi linchado sem demora serve como uma espécie de “vire
a página”, em muitos casos assim.
Além do mais, se é de fato um crime planejado por uma equipe, e não o
gesto impulsivo de um maluco, não faltarão bodes expiatórios, indivíduos suspeitos
que terão sido mandados para o local pelos “chefes” sem saber exatamente o que
se espera deles, testemunhas com história pronta que rapidamente oferecerão seu
despiste às autoridades.
Fico imaginando o quanto essa lembrança do “Homem de
Cinza” deve ter incomodado Garcia Márquez durante a vida inteira. Por ironia,
ele teria sido o único a ver o instigador direto do crime e a desconfiar dele, e
nem o fato de ter se tornado um dos escritores mais famosos do mundo fez com
que alguém um dia lhe desse ouvidos.
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