domingo, 27 de fevereiro de 2022

4798) "O Rio e a Morte": um revólver em cada cinto (27.2.2022)




Os violentos precisam da violência alheia, para justificar a sua. Claro que eles mesmos podem dar início às hostilidades; mas... se o contexto é minimamente civilizado, sempre é prudente poder alegar legítima defesa. É um dos pretextos mais nobres para estourar os miolos de alguém.
 
É o princípio básico do western americano. Nos famosos duelos na rua vazia, com dois pistoleiros caminhando devagar um na direção do outro, a regra é clara. Quem sacar primeiro é o agressor, portanto perde a razão. A razão passa a ficar do lado de quem, em legítima defesa, saca depois. O segredo, portanto, é ser mais rápido no gatilho – sacar depois, e atirar primeiro.
 
Eu entendi isso aos dez anos de idade, vendo faroeste nas matinais do Babilônia, comendo castanha confeitada, batendo com os pés no chão e gritando, e todo mundo fazendo a mesma coisa.


No livro A Linguagem Secreta do Cinema (Ed. Nova Fronteira, 2006), Jean-Claude Carrière faz uma análise minuciosa (pág. 97 e seguintes) desse clichê do duelo dos pistoleiros, mostrando o emaranhado de improbabilidades que ele envolve. É preciso que um saque primeiro, e que o outro atire primeiro. Uma decisão que às vezes depende de um fotograma.
 
Luís Buñuel, o grande parceiro de Carrière, era um aficionado das armas de fogo, e diz-se que o hábito do tiro ao alvo contribuiu para aumentar na velhice a surdez que já o incomodava desde cedo. Gostava de atirar. Não tinha preconceito contra as armas. Seus filmes surrealistas gostam de provocar o público com cenas de tiroteios gratuitos e fuzilamentos descontraídos.
 
Esse mesmo Buñuel se confessou, mais de uma vez, estarrecido com a propensão dos mexicanos para a violência armada e o assassinato por bobagens. Ele foi morar no México com mais de 40 anos, e viveu ali até o fim da vida.
 
Seu filme mais voltado para esse tema é O Rio e a Morte (“El Rio y La Muerte”, 1954). Não é um dos seus melhores filmes dessa fase, mas é um filme que ajuda a rastrear essa tendência do México a ser um dos países mais violentos do mundo.
 
El Rio y la Muerte fala de um povoado à beira de um rio largo e vagaroso. Uma enchente do rio destruiu a vila. Ela foi reconstruída na margem oposta, mas o cemitério permaneceu lá. Agora, a cidade vive dividida entre uma rixa sangrenta entre as duas famílias principais. Quando morre alguém nas “vendettas” familiares, o assassino cruza o rio a nado e se refugia no mato (os Anguianos) ou numa montanha próxima (os Menchaca). E depois da fuga o morto faz a mesma travessia do rio, de canoa, para ser sepultado.


É uma geografia simbólica interessante, essa que coloca a vida normal do vilarejo numa margem, e na outra o local onde os mortos são enterrados e seus matadores se escondem.
 
O filme está aqui, no YouTube (em espanhol, sem legendas):
https://www.youtube.com/watch?v=P5550SYIM2Q&t=347s
 
Há poucas imagens típicas de Buñuel no filme. Um foragido abre a carta da noiva usando um facão. Depois de marcar com ela um encontro clandestino, à noite, ele chega. Os dois se abraçam. Corta para um galo cantando, cercado de galinhas. O casal entra no mato...
 
A maior parte do filme, a parte do meio,  ocorre num flashback. Gerardo Anguiano, filho de um homem morto pela guerra de famílias, é um médico jovem que mora na capital, e não quer se envolver com vinganças, o que decepciona sua mãe, cujo marido foi assassinado. É curioso que nesse vilarejo as mulheres são grandes incentivadoras do machismo, e obrigam maridos e filhos a andar armados. A mãe de Gerardo, D. Mercedes, ao discutir com um amigo da família, desabafa: “Você sempre foi um covarde, como todos da sua família. Se não tem a honra de se defender, vá para casa e vista uma saia.”


Gerardo tem um problema de saúde, está em tratamento num “pulmão de aço”, e ali recebe a visita do seu inimigo Rômulo Menchaca, que vem provocá-lo a um duelo quando for ao vilarejo. Menchaca se irrita com o pacifismo do outro e o esbofeteia. Depois pede desculpas por bater num homem indefeso, mas o desafio ao duelo fica de pé.
 
O filme é quase didático na sua mensagem anti-armamentista, o que desagradava Buñuel: “É meu único filme que defende uma tese moral, algo que me deixa incomodado.” No livro em que discutiu sua obra com os jornalistas José de la Colina e Tomás Pérez Turrent (Objects of Desire, na tradução inglesa), ele comenta, no capítulo 15:
 
Eu queria acima de tudo ter a chance de mostrar uma tradição autêntica do litoral da região de Guerrero: quando alguém é assassinado, o caixão é levado de casa em casa da família do morto, onde todos bebem. Depois levam para a frente da casa do assassino, que já fugiu, e os parentes do morto gritam: “Apareça, filho dessa, filho daquela! Venha pagar pelo seu crime!...”
 
Há uma cultura da morte “por dá cá aquela palha”, o que aparece na sequência inicial, num batizado, quando dois compadres bebem e juram amizade, um deles diz uma piada boba, e o outro o mata com uma facada no estômago. Nas suas memórias (Meu Último Suspiro, Ed. Nova Fronteira, 1982, trad. Rita Braga), Buñuel explica:
 
Essa atitude “viril”, e consequentemente a situação da mulher no México, tem uma origem espanhola que é inútil negar. O machismo procede de um sentimento muito forte e vaidoso da dignidade do homem. É extremamente melindroso, suscetível, e não há nada mais perigoso do que um mexicano que nos olha calmamente e nos diz, com voz suave, porque, por exemplo, recusamos beber com ele uma décima tequila, uma frase sempre perigosa: “ – Me está usted ofendiendo. (O senhor está me ofendendo)” Em situações como essa é melhor beber o último copo.  (pág. 292)
 
Há um culto à honra, sempre fragilíssima; às vinganças longamente amadurecidas e anunciadas; à violência estapafúrdia e grotesca. Um diálogo do filme diz:
 
– Me lembro quando Pablo Codina entrou a cavalo no velório de Anselmo Lepe, cortou a cabeça do morto, amarrou-a e levou-a para a cantina. 
– Sim, mas a família do morto foi à cantina e esfolou Codina.
 
O filme tem um desfecho meio forçado. Os dois desafetos (um de terno e gravata, o outro com roupa de vaqueiro), depois de vários encontros e escaramuças, se abraçam e selam a paz. Um final tão forçado quando o de La Hija del Engano (1951), onde o diretor parece mais uma vez se curvar à tradição latino-americana do final melodramático, lacrimoso e feliz, onde “o importante é a família ficar unida”.
 
O México brutal de Buñuel nos anos 1950 é o mesmo México contemporâneo de Roberto Bolaño com 2666 ou de Cormac McCarthy e os Irmãos Coen com Onde os Fracos Não Têm Vez. Uma civilização onde se porta o revólver com a mesma inocência com que um sertanejo porta a peixeira.
 
Nos velhos tempos do surrealismo parisiense, circulava entre a turma de Buñuel e André Breton o dito de que “o ato surrealista mais simples seria empunhar um revólver e sair pela rua disparando a esmo, abatendo pessoas”. Parece que alguns anos de México e de vida real curaram o diretor espanhol desse impulso juvenil.   
 

 
 
 
 







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