sábado, 18 de setembro de 2021

4745) Kafka no século 21 (18.9.2021)



 
A revista online “Prosa Verso e Arte” reproduz um depoimento de Jorge Luís Borges sobre a obra de Franz Kafka e a influência que ela teve sobre sua própria obra.
 
 
Já escrevi por aqui que Borges pode não ter sido o maior escritor de sua época, mas é possível que seja o maior leitor do século 20.  Suas qualidades como escritor brotam da maneira atenta, erudita mas descontraída, questionadora mas empática, com que ele lê os livros alheios, principalmente os clássicos. Com seus contemporâneos ele costumava ser ranheta, desdenhoso, hiper-exigente, às vezes ressentido – como o provam as anotações de Bioy Casares em seu quase cúbico Borges, 2006.


Borges observa um aspecto importante na obra de Kafka, a sua simplicidade com a linguagem. Diz ele que esbarrou na obra desse desconhecido autor tcheco quando estava estudando alemão, e descobriu que com um dicionário alemão-inglês dava conta de ler aqueles contos surpreendentes. As palavras eram palavras comuns. As situações é que eram fantásticas.
 
Borges diz:
 
O fato de que Kafka escrevia de maneira tão simples me chamou a atenção, já que eu mesmo podia entendê-lo, apesar de o movimento impressionista, tão importante nessa época, ter sido marcado, em geral, pelo barroco, que jogava com as infinitas possibilidades do idioma alemão. (...) Eu traduzi o livro de contos cujo primeiro título é ‘A Transformação’ e nunca soube por que todos decidiram chamá-lo de ‘A Metamorfose’. É um disparate, eu não sei quem teve a ideia de traduzir assim essa palavra do mais simples alemão. Quando trabalhei com a obra, o editor insistiu em deixá-la como está porque já era famosa e se vinculava a Kafka.


De fato, “metamorfose” é uma versão meio erudita de “transformação” (Verwandlung). Para mim, que não sei quase nada de alemão, não faz diferença.  Mas para algum leitor há de fazer, e esta é uma das muitas cascas de banana à espera de um tradutor apressado, como todos nós acabamos sendo mais cedo ou mais tarde.
 
Em qualquer idioma existem essas classes de sinônimos que eu, para meu consumo interno, chamo de “sinônimos plebeus” e “sinônimos chiques”. São palavras que querem dizer basicamente a mesma coisa, mas o fato de um personagem preferir uma delas à outra implica numa pequena sutileza psicológica que está sendo indicada ao leitor.
 
Por exemplo, se você vai a uma repartição ou um consultório, a recepcionista geralmente lhe pede para “aguardar” um pouco, e não para “esperar”. “Esperar” é um verbo comum, rasteiro, um verbo de sandália havaiana, qualquer brocoió usa. Mas “aguardar” é uma versão sapato-de-verniz da mesma idéia, e é por isso que as recepcionistas recebem instruções para falar assim – mesmo que o cliente esteja de bermuda e havaiana. É para mostrar que naquele ambiente fala-se um português diferenciado.
 
Secretárias dos escritórios de todo o Brasil não mandam uma carta, elas enviam uma carta. Elas não pedem, elas gostariam de solicitar. Elas não pagam, elas efetuam o pagamento. Esse tipo de linguagem de coque-amarrado acabou abrindo caminho, em décadas recentes (ah, como é divertido comparar décadas!) para o gerundismo, a mania de dizer que “nós vamos estar enviando”, etc.
 
Voltando a Kafka... Ou melhor, continuando nele – porque um dos temas centrais na obra de Kafka era a burocracia, a impessoalidade, a falta de empatia, a senoçãozice das pessoas dotadas de um minúsculo poder de decisão numa instância burocrática lá na esquina da Rua de São Nunca com a Avenida Já Era.


(desenhos de Kafka)
 
As pessoas em livros como O Processo, O Castelo e outros comportam-se muitas vezes como esses burocratinhas-do-birô-da-frente capazes de passar uma tarde inteira a dois metros de distância do Suplicante que espera debruçado no balcão e nem sequer erguem os olhos para ele, para não ter que perguntar: “O senhor deseja alguma coisa?...”
 
Borges faz uma outra observação, que não vou deixar passar em branco de jeito nenhum.
 
E quando Kafka faz referências é profético. O homem que está aprisionado por uma ordem, o homem contra o Estado, esse foi um de seus temas preferidos.
 
Kafka escreveu contra o Estado mas contra muito mais do que isto: escreveu contra a Hidra da qual o Estado é apenas uma das muitas cabeças, e nem por ser a maior (e já começa a não sê-lo) é a única visível. Kafka escreveu contra o poder das Organizações, dos Sistemas interligados de forças manipuladoras (e depredadoras) da Natureza física e da linguagem.
 
Críticos mais politizados do que eu diriam que o autor de Na Colônia Penal escreveu contra o complexo Industrial-Militar-Político-Financeiro-Tecnológico-Jurídico que, à força de uma proliferação de avatares neo-liberais e bilionários, tomou conta do mundo no século 20 e provavelmente asfixiará até a morte os Estados-Nações que o pariram.
 
Os Estados-Nações, no tempo de Kafka (ele morreu em 1924) ainda podiam ser vistos como Saturnos que devoravam os próprios filhos. Hoje, por não terem evoluído e se adaptado, são dinossauros decadentes, fagocitados pelas forças cegas e famintas das Corporações. Essas Corporações que cada Estado nacional incentivou, subvencionou, legalizou, protegeu, indenizou, sancionou, isentou e absolveu até o momento de pousar o pescoço no cepo para o machado.   


(C
yberpunk 2077
 
Neste aspecto, os legítimos sucessores da ficção de Kafka não são os parafraseadores de Kafka no mainstream, mas os cyberpunk da ficção científica (William Gibson, Bruce Sterling, Neal Stephenson, etc.) e os cultores do que James Wood chamou de “realismo histérico” (Don DeLillo, David Foster Wallace, etc.).
 
Julio Cortázar, que afirma nem ser tão influenciado assim pelo autor tcheco, admite:
 
Acho que a máquina do horror tem no campo do romance dois exemplos extraordinários. Um deles é O Processo, de Kafka. (...) Neste livro surge o caso do destino que vai se cumprindo inexoravelmente, passo a passo, sem que jamais se saiba a última linha, sem que se chegue jamais a saber quais eram as motivações que determinaram esse destino. Muitas vezes pensei, lendo esses casos típicos de desaparecidos e torturados na Argentina, que eles viveram exatamente O Processo de Kafka, porque em muitos casos eles foram detidos só por serem parentes de gente que tinha atuação política (eles mesmos não tinham atuação política, ou tinham de maneira muito parcial), e foram torturados, presos e muitos, executados. Essas pessoas, em cada etapa do seu destino, devem ter se perguntado quem era o responsável, de onde vinha aquele acúmulo de desgraças, e não puderam saber nunca, porque a única coisa que puderam conhecer foram seus torturadores, seus executores. Que, por sua vez, tampouco sabiam quem eram os chefes...
(Omar Prego, O Fascínio das Palavras, José Olympio, 1991, trad. Eric Nepomuceno)
 
O outro exemplo de Cortázar justapõe ao de Kafka é, previsivelmente, o 1984 de George Orwell.
 
Mas Kafka não bateu na América Latina apenas como o anunciador da “máquina do horror”. Borges (no depoimento citado acima) lembra que Kafka desejou queimar seus escritos, e o descreve como “...esse sonhador que não quis que seus sonhos fossem conhecidos”. É uma avaliação próxima à de J. G. Ballard, que dizia em 1986, comentando uma antologia de sonhos:
 
O típico sonho REM tem a estrutura narrativa linear de uma narrativa verbal; primeiro isto, depois isso, depois aquilo, onde os vários istos-e-aquilos têm alguma conexão temática perceptível entre si. Em outras palavras: a velha arte de contar histórias, com seu apelo imemorial e acesso imediato aos grandes mitos e lendas que pavimentam o solo de nossa psique individual. Nos domínios do sonho, Kafka é um autor contemporâneo, e atualizadíssimo. Não existe metaficcção pós-moderna nem espaço para o “nouveau roman” na hospedaria da noite.
(A User’s Guide to the Millenium – Essays and Reviews, New York, Picador, 1996; trad. BT)


Essa liberdade onírica seduziu também Gabriel Garcia Márquez, que lembra seus tempos de jornalista jovem e sem um vintém:
 
Um dos meus companheiros de quarto era Domingos Manuel Vega, um estudante de medicina que já era meu amigo desde Sucre e que compartilhava comigo a voracidade da leitura. (...) (Ele) chegou uma noite com três livros que acabava de comprar e me ofereceu um ao acaso, para ajudar-me a dormir. Desta vez, porém, deu-se o contrário: nunca mais tornei a dormir com a placidez de antes. O livro era “A Metamorfose” de Franz Kafka. (...)Eram livros misteriosos, cujos desfiladeiros não eram apenas diferentes, como muitas vezes eram contrários a tudo que eu conhecia até então. Não era necessário demonstrar os fatos, bastava que o autor os tivesse escrito para que tudo fosse verdade, sem mais provas do que o poder do seu talento e a autoridade de sua voz.
(Vivir para contarla, Bogotá, Norma, 2002; trad. BT)
 




2 comentários:

Anônimo disse...

"Não existe metaficcção pós-moderna nem espaçompara o “nouveau roman” na hospedaria da noite."

Perdão, não entendi.

Braulio Tavares disse...

Anônimo: Em 1o. lugar, havia um erro de digitação ("espaçompara"), que já corrigi. "Metaficção" é a ficção que reflete sobre si própria, como um livro onde os personagens afirmam que são personagens de livro, onde o autor comenta que não sabe o que vai escrever em seguida... Uma porção de recursos do chamado "pós-modernismo", uma tendência muito forte na literatura das décadas mais recentes. O "nouveau roman" foi um movimento literário francês onde se tentou "quebrar" a narrativa clássica tradicional, a que todos nós estamos acostumados -- usando, para isto, um excesso de objetividade, de meras descrições, ausência de enredo, ausência de psicologia. Ballard quer dizer que Kafka conta histórias como se contava em 1800, nas hospedarias, à noite, diante da lareira, pessoas compartilhando narrativas reais ou inventadas -- ou seja, sem nenhum esforço de ser vanguardista, de revolucionar as técnicas narrativas, entregando-se ao prazer de contar uma simples história, mesmo uma história bizarra ou absurda como as de Kafka.