quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

4538) O autor sem nenhum caráter (2.1.2020)




(Monteiro Lobato)


Eu tinha acabado de comprar um livro na banquinha do sebo e ao passar na calçada de um bar vi alguns braços se erguerem: eram amigos que estavam tomando um chope para comemorar o fim do expediente. Meu expediente só começa pra valer de noite, mas num ato de solidariedade corporativa puxei uma cadeira e mostrei de longe, ao garçom, o indicador erguido.

– Comprou livro? – perguntou um deles, olhando o saco plástico que botei em cima da mesa.

Abri o saco e mostrei: era A Barca de Gleyre, de Monteiro Lobato. Livro de correspondências dele com Godofredo Rangel. Era um dos dez títulos favoritos de Guimarães Rosa.

– Lobato? – disse um deles, dando um gole. – Mas ele não era racista?

O racismo de Lobato acaba de ser descoberto pelas redes sociais, que são uma espécie de confessionário público onde todo mundo vai confessar os pecados alheios.

– E você é machista – respondi. – E nem por isso eu deixo de ler as porcarias que compro naquelas tuas noites de autógrafos, onde não vai ninguém.

Houve uma gargalhada geral, inclusive dele (cujas noites de autógrafos, diga-se de passagem, botam gente pelo ladrão), e ficou por 1x1. Mas a gente entrou num corredor-de-discussão interessante: o fato de um autor cultivar uma filhadaputice qualquer deve riscar a obra dele de nossas leituras possíveis?

No tiroteio da conversa alguém lembrou que William Faulkner era alcoólatra, pecado venial que foi minimizado por todos, com mais uma rodada de chope. Dostoiévsky perdeu fortunas no jogo, lembrou outro; mas desde quando o brasileiro acha que jogo é pecado? Jogo é um esporte nacional, mais generalizado do que o futebol. Céline era antissemita, disse alguém. Eu nunca li Céline, mas não seja por isso: já devo ter lido muitos antissemitas sem saber.

Chegamos a um veredito provisório: pode até existir algum indivíduo-ou-indivídua que não tenha defeitos de caráter, mas essas figuras certamente não serão escritores profissionais. Serão monges ou monjas em algum mosteiro remoto, numa cordilheira onde se fala o sânscrito.

Quem é escritor(a) é porque é humano, demasiado humano. Tem algum defeito de fábrica, e os primeiros da fila são a vaidade intelectual, a autoindulgência afetiva, a propensão para cagar regras e a ânsia de enriquecer sem fazer força. Depois vêm o machismo (em homens e em mulheres), o racismo, o classismo, o voto-do-partido-oposto-ao-nosso...

Não acaba nunca, até porque os defeitos que criticamos nos escritores, agora em 2019, não são necessariamente os mesmos que criticávamos vinte ou trinta anos atrás.

A questão que se coloca para muita gente ansiosa é expressa mais ou menos nesses termos: “Mas como ele pode ser um grande escritor, se em sua vida pessoal ele era um canalha, ou era desonesto, ou era cruel, ou era bajulador de poderosos, ou batia na mulher, ou apanhava da mulher?...”

Ser escritor (artista, etc.), muitas vezes, é um processo de compensação num indivíduo que sabe estar trilhando um caminho nebuloso em outras regiões da vida. Muitos autores de belos poemas sobre a espiritualidade humana derivaram para a religião movidos pelo tormento de se acharem grandes pecadores.  Talvez nem o fossem tanto, aos nossos olhos de 2019. Mas eles sabiam a vida que levavam. Achavam-se culpados de pecados inomináveis, e condenados ao inferno; e procuravam se redimir através da poesia, não pedindo desculpas ou escondendo suas “faltas”, mas lançando ao seu Deus perguntas sérias sobre sua própria condição e a condição humana em geral.

Quem espera de um escritor uma impossível pureza de caráter e uma improvável nobreza de sentimentos está atribuindo ao ofício literário um poder que ele não tem: o poder de servir de modelo para todos nós, para que digamos aos jovens, “olhem só, o Grande Escritor Fulano é assim, procurem ser como ele!”.  Não, não é isso.

Um livro é como uma chapa de raio-X. “Olhem só o estado do pulmão desse rapaz!...” A chapa é tirada para nos dar uma idéia do que acontece com aquela pessoa, e o livro é escrito por uma razão não muito diferente. Não temos que ser como os escritores. Nenhum desses caras deve servir de modelo para nós. Não são santos nem heróis da pátria. Alguns se metem a ser, e acabam se tornando figurões meio patéticos.

A literatura é feita para nos dizer o que somos, e não “como devemos ser”. E o que somos nem sempre é muito agradável ao espelho. Somos monstros? Não, somos até bonitinhos por fora (nas fotos, nos currículos Lattes, nas redes sociais) mas por dentro somos todos quasímodos. Me lembro de um bêbo que me confidenciava, anos atrás: “Rapaz, todo mundo me acha todo certinho, mas por dentro eu sou pior do que uma batida de trem.”

Não era um escritor, era um leitor. "Meu semelhante, meu irmão."


  



















9 comentários:

Unknown disse...

Há muito tempo que não visitava o blog. Bom saber que ainda o escreve. E que o escreve bem.

Lilian Starobinas disse...

E a Barca de Gleyre, que coletânea sensacional!

Fraga disse...

Clap, clap, clap!
Baita começo de ano, que é bissexto e assim oferta um dia a mais pra vc deliciar seu cordão de admiradores, que cada vez aumenta mais. Abração!

CANCAO DE FOGO disse...

Um "desvio" de conduta pode significar o banimento de um escritor talentoso do mercado editorial. Caso bastante ilustrativo é do "polígrafo" cearense Gustavo Barroso, autor de Terra de Sol, um dos melhores livros de sociologia sobre o Nordeste. Sem falar na sua imensa contribuição na divulgação do folclore, com obras como AO SOM DA VIOLA, ATRAVÉS DOS FOLCLORES, O SERTÃO E O MUNDO etc. Foi também um contista talentoso e um historiador de mérito. Assinou, por muitos anos, uma coluna na revista O CRUZEIRO chamada "Segredos e Revelações da História do Brasil". Foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras e por duas vezes ocupou a presidência da casa. O problema é que, sendo descendente de alemães pelo lado materno, aderiu ao nazismo. Foi integralista de primeira hora e também anti-semita. Ou seja, deu DOIS TIROS NOS PÉS. Apesar de haver escrito cerca de 125 livros, foi completamente banido do cenário das letras nacionais, sendo raramente lembrado por alguma editora cearense, caso da Edições Demócrito Rocha, que lançou uma bela edição de TERRA DE SOL, seu livro de estréia.

Marcelo disse...

Seu texto é perfeito. Deveria ser orelha de algum livro importante, quem sabe de alguma nova edição de Admirável Mundo Novo (Audous Huxley) - já temos uma com introdução de Olavo de Carvalho.

Leila Miccolis disse...

Quando menciono que Heidegger é um dos meus filósofos preferidos, 99,99% das pessoas arregalam os olhos como que me acusando de nazista... Ótimo texto, Bráulio, lúcido como todos os demais... DEMAIS!

franciscomartinsescritor disse...

Maravilha de texto. Gosto muito de Lobato e procuro ler tudo que escrevem sobre ele, bem como todas as obras. Paraben!

Unknown disse...

Graças a Deus acreditei no Dr. ODION depois de ler tantos testemunhos sobre seu trabalho e decidi entrar em contato com ele. Estou escrevendo meu próprio testemunho que nunca pensei que seria possível. Antes de conhecer o Dr. ODION, eu sentia que tudo isso eram crenças supersticiosas e o feitiço não foi cientificamente comprovado como verdadeiro, mas esse lançador de feitiço me fez acreditar o contrário. ELE É UM BOM HOMEM. Eu recuperei meu ex-namorado com a ajuda deste homem depois de 1 ano de tentativas, mas nenhum meio possível parecia mostrar. Se você leu qualquer testemunho sobre o Dr. ODION, é verdade. Meu namorado me deixou há mais de 1 ano e eu estava querendo tê-lo de volta e tentei implorar para ele voltar para mim, mas ele me deu ouvidos moucos e me fez passar de boba em público. O Dr. ODION foi encaminhado a mim por um amigo meu que ele também ajudou no meu local de trabalho e eu disse a ele que ele era supersticioso e um tolo por acreditar nessas coisas fetichistas. Mas depois de tantas reflexões sobre isso, procurei por ele na Internet e decidi contatá-lo por e-mail. Ele logo me deu seu número de celular e conversamos um pouco também. Ele é o melhor. Antes de seu feitiço funcionar, eu já tinha certeza. Em 2 dias, meu ex-namorado depois de 1 ano zombando de ser um homem inútil, veio me implorar desta vez. Eu não sabia o que esse homem fazia, mas ele é muito bom em fazer isso por mim. Estou agradecendo a ele e ao meu amigo por conhecê-lo também todos os dias da minha vida. Acredito que ele ajudará qualquer pessoa que vier a contatá-lo (drodion60@yandex.com) ou pelo WhatsApp para ele +2349060503921.

Lux disse...

Amei ler isso e vindo de vc, autor quw admiro. Estou lendo agora o o ABC de Suassuna. E a Barça de Gleyre, de Lobato, adorei ler. Como negar a obra dele?! Nao da... obrigado.