sexta-feira, 19 de abril de 2019

4458) A terceira torre (19.4.2019)




Também fiquei apreensivo quando ouvi as notícias sobre o incêndio da Catedral de Notre-Dame. Poucas semanas atrás eu tinha lido O Corcunda de Notre Dame (Nossa Senhora de Paris, 1831) de Victor Hugo, e comentei aqui no blog. A leitura me fez pensar não somente na catedral distante, mas em todas essas edificações em pedra que se pretendem para sempre.

Eu até entendo o raciocínio, porque o mundo é cheio de construções monumentais em pedra que estão resistindo bem há milhares de anos. Mas a pedra também se esfarela, e vira areia.

Como na história do poderoso Ozimândias, no soneto homônimo de Percy Bysshe Shelley (trad. minha):

Encontrei um viajante de uma terra antiga
que disse: “Duas pernas gigantes de pedra
jazem sem tronco no deserto... Perto, na areia,
um rosto semi-enterrado franze o cenho

e torce o lábio, num esgar de comando,
a mostrar que o escultor era bom leitor
dessas paixões que eternizam as coisas sem vida,
a mão que arremeda, o coração que inspira.

E no pedestal leem-se as palavras:
Meu nome é Ozimândias, Rei dos Reis;
contemplai minha obra, ó poderosos, e desesperai!

E não resta nada em volta. Entre as ruínas
daquele desastre colossal, deslimitado e nu,
estende-se apenas a areia lisa e deserta.”

O poema original é rimado. Ele é citado na ficção científica de Robert Silverberg e na série Breaking Bad de Vince Gilligan. Ozimândias é outro nome de um personagem histórico (Ramsés II), citado por Alan Moore na série Watchmen e por Anne Rice em A Múmia.

O poema ecoa a derrocada de um poder que se achava indestrutível, mas quando chega sua hora cumpre seu destino e vira pó.

É uma alegoria fácil, ao alcance da mão de qualquer mente, de modo que não custa nada ir um pouco além e ver no poema uma certa vindicação do pobre do Ozimândias.  Ficaram destroços bastantes dele para inspirar um soneto que acabou lhe sendo superior e mais duradouro, mas em todo caso não se perderam a sobrevivência (simbólica) do rosto semi-enterrado na areia e da arrogante inscrição.

Sem elas, não haveria poema.

E quando até a pedra passa, a palavra fica. Isso era mais ou menos a imagem que Victor Hugo propunha em 1831 no capítulo “Isto acabará com aquilo” do Livro Quinto do seu romance sobre Notre Dame.

É o que diz o arcediago Frollo, erguendo um livro e apontando para o edifício da catedral visto pela janela. “Um dente triunfa duma massa; o rato do Nilo mata o crocodilo; o espadarte mata a baleia; o livro matará o edifício”. Hugo glosa este tema ao longo de dez robustas páginas, sob a forma “a imprensa acabará com a igreja” e em seguida “a imprensa acabará com a arquitetura”.

Quando se refere à imprensa, não é propriamente o jornalismo, mas o livro impresso, o papel com letras. Notre Dame já foi chamada “o Livro dos Pobres”, porque diante de suas paredes, altares e nichos passaram sucessivas gerações de pessoas, ao longo dos séculos, que ali encontravam os símbolos remotos de uma sabedoria vedada aos sábios e acessível aos analfabetos.

As paredes de inúmeras catedrais estão cobertas de memes cifrados, para quem sabe o que significa cada um daqueles detalhes. É outra forma de saber ler, que prescinde da alfabetização das massas.


(ilustração: Edgar Moura)

O livro impresso, contudo, é ubíquo, está por toda parte, cabe em qualquer mão, deixa-se devassar por qualquer olho que lhe conheça as letras. Diz Hugo: “Toda civilização começa pela teocracia e acaba pela democracia”. E nesse trecho ele vê uma ruptura tecnológica proporcionando essa mudança. A catedral podia ser interpretada por analfabetos, mas era preciso ir até ela. O livro requer um certo treino; mas ele se multiplica e se amplia, até cobrir o mundo com um tapete de mensagens escritas.

No dia do incêndio, compartilhei um texto de Sara L. Uckelman, no Facebook, onde ela (estudiosa da Idade Média) diz:

Eu sei como é a vida das catedrais. Elas não são monumentos estáticos ao passado. Elas são construídas, depois são incendiadas, são reconstruídas, são ampliadas, são vítimas de pilhagem, são erguidas novamente, desabam porque a construção não foi bem feita, e são erguidas mais uma vez, recebem novas ampliações, são remodeladas, são alvo de bombardeios, são construídas novamente. É a presença constante, e não a estrutura original, que tem verdadeira importância. 

Ela vê a catedral como algo mais dinâmico do que o que Victor Hugo enxergava quando diz que “até surgir Gutenberg, é a arquitetura a escrita principal, a escrita universal”. Hugo vê os monumentos de pedra como algo majestoso que está virando um dinossauro pesadão, em luta contra os velociraptores que são os livros.

Curiosamente, é uma encruzilhada semelhante à de hoje, quando o próprio livro, o papel impresso, se depara com a leveza e a velocidade e a maleabilidade da linguagem digital. “Isto acabará com aquilo”. Chegou a vez do livro ser substituído por outra espécie dominante?

Quando Hugo diz que “a invenção da imprensa é o maior acontecimento da história” abre caminho para que o William Gibson possa dizer o mesmo do ciberespaço ou Philip K. Dick dizê-lo da simulação artificial do pensamento.

“Um livro faz-se tão depressa, custa tão pouco e pode ir tão longe!”, admira-se Hugo. Parece que há um sonho antigo na humanidade de fazer com que o registro do pensamento seja tão rápido, tão leve e impalpável quanto o pensamento propriamente dito; e parece que o mundo digital tenta realizar esse sonho.

Hugo descreve o “edifício” gigantesco, de “mil andares”, formado pelo conjunto de livros disponíveis ao ser humano. É quase o que um escritor de hoje poderia dizer da World Wide Web, das redes sociais, da Internet em si:

Incontestavelmente é esta uma construção que cresce e se levanta em espirais sem fim; lá há também uma confusão de línguas, atividade incessante, labor infatigável, concurso incansável da humanidade inteira, refúgio prometido à inteligência contra um novo dilúvio, contra uma submersão de bárbaros. É a segunda torre de Babel do gênero humano.

Hugo fala da torre feita de papel; nós de hoje podemos dizer o mesmo da torre digital que estamos guardando entre as nuvens. Isto acaba sempre com aquilo. Ao que parece, continuamos marchando numa direção em que o mais leve deixa para trás o mais pesado, o numeroso prevalece sobre o único, o imaterial se prova mais duradouro do que o físico. A catedral é substituída pelo livro, que é substituído pela tela eletrônica conectada, que seria no caso a terceira torre de Babel do gênero humano.








Um comentário:

Braulio Tavares disse...

Acho que o livro tem influência sobre isso. Se você ler um livro daquelas proporções (em tamanho e qualidade) sobre uma cidade e sobre um monumento, não tem como não se ligar emocionalmente àquilo.