sexta-feira, 15 de março de 2019

4446) O Terceiro Artista (15.3.2019)



(todas as ilustrações são de Leo & Diane Dillon)


O trabalho em parceria requer que cada parceiro abra mão de um pedacinho de sua individualidade para permitir que o outro interfira na obra-em-progresso de acordo com sua visão.

Há muitas maneiras de obter esse equilíbrio. Os críticos de rock falam com frequência no modo Lennon-McCartney de compor. Ao contrário de muitas duplas onde um faz a letra e o outro faz a música, ambos costumavam compor sozinhos (letra e música) uma primeira parte, e entregar ao companheiro para fazer a segunda parte.


Um exemplo notório desse processo é “A Day in the Life”, em que John fez toda a primeira parte (“I read the news today, oh boy...”) e McCartney a segunda (“Woke up, fell out of bed...”).

O casal de artistas plásticos e ilustradores Leo e Diane Dillon, muito conhecidos dos leitores de ficção científica, contribui para isto com um conceito interessante, que eles chamam O Terceiro Artista. É uma espécie de entidade simbólica que, no momento da criação, tem precedência sobre a individualidade de cada um.

Os Dillons se tornaram famosos ao iniciar uma parceria com Harlan Ellison, fazendo capas que se tornaram clássicas como a de Deathbird Stories (1975) e as ilustrações internas da inconoclasta antologia Dangerous Visions (1967).


Dizem os Dillons, numa entrevista à revista Locus:

Diane: Quando criamos o conceito de O Terceiro Artista isso nos ajudou muito, porque fomos capazes de ver a nós mesmos como um artista e não como dois indivíduos, e esse artista estava fazendo uma coisa que nenhum de nós faria sozinho. Isso afastava da obra a possibilidade de estar apenas refletindo o ponto de vista de um de nós. (...) É como quando certos autores dizem que os personagens assumem o controle da história. Num certo sentido isso também acontece em nosso processo criativo.

Leo: As pessoas costumam falar no “estilo Dillon”. Acho que a certa altura nós fizemos um pacto. Decidimos abrir mão de nossas essências pessoais, a parte que tornava cada um capaz de uma arte pessoal. E com isso abrimos uma porta para todas as possibilidades. Se você não tem um “eu” – que continua a ter, é claro, apenas o deixa de lado – então você está aberto pra tudo, pode fazer tudo, ou tentar tudo.

(Locus, abril de 2000, trad. minha)


Não é muito diferente do processo descoberto por Jorge Luís Borges e Adolfo Bioy Casares para produzir algumas obras altamente satíricas, referenciais, eruditas, como Seis problemas para Don Isidro Parodí (1942) e as Crônicas de Bustos Domecq (1967) entre outras.

Em seu ensaio autobiográfico Perfis, Borges comenta:

Foi a certo ponto no início dos anos quarenta que começamos a escrever em colaboração – um feito que até aquela época eu achava impossível. Eu inventara o que nós achávamos que fosse uma intriga muito boa para uma estória de detetives. Numa manhã chuvosa ele me disse que devíamos fazer uma experiência com ela. Concordei relutante, e um pouco mais tarde naquela mesma manhã aconteceu. Um terceiro homem, Honorio Bustos Domecq, apareceu e assumiu a direção. Com o tempo, governou-nos com mão de ferro e, para nosso divertimento, e depois para nossa consternação, tornou-se completamente distinto de nós, com seus próprios caprichos, seus próprios trocadilhos e seu próprio estilo, muito elaborado, de escrever.

(Elogio da Sombra / Perfis, Ed. Globo/MEC, 1971, trad. Maria da Glória Bordini, p. 109-110)


Esse curioso conceito de um “terceiro autor” parece refletir a sensação, numa parceria bem sucedida, de que não se trata de abolir personalidades, mas de compensar limitações recíprocas. Parece dar bons resultados quando os dois parceiros são bem diferentes um do outro. Os Dillon, além de serem marido e mulher, são um casal interracial. Borges e Bioy têm uma razoável diferença de idade (15 anos) e Borges comenta, no mesmo livro:

Nesses casos sempre se presume que o homem mais velho é o mestre e o mais novo, seu discípulo. Isto talvez tenha sido correto no começo, mas vários anos mais tarde, quando começamos a trabalhar juntos, Bioy era real e secretamente o mestre. (...) Opondo-se a meu gosto pelo patético, pelo sentencioso e pelo barroco, Bioy fez-me sentir que a serenidade e o comedimento são mais desejáveis. Se me permitirem uma afirmação generalizada, Bioy levou-me gradualmente ao classicismo. (p. 109)

Quando dois talentos complementares conseguem atuar com harmonia, esse “terceiro artista” é mais que a soma dos dois. Isto acontece com “Ellery Queen”, um dos grandes do romance policial clássico, que é na verdade a fusão entre os plots intrincados e as escaletas minuciosas de Frederick Dannay e os diálogos e personagens concebidos por Manfred B. Lee, ao longo de uma carreira de mais de 40 anos.


O processo não se dá sem tensão. Diane Dillon lembra que quando marido e esposa brigavam, o Terceiro Artista assumia o comando e obrigava os dois a se falarem, para que o trabalho não ficasse prejudicado. “Depois de uma certa altura,” diz ela, “a gente estava estirando a língua um para o outro, e fazia as pazes.”



Uma extensa coleção da obra dos Dillons:









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