quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

4413) Cineasta, o administrador de acidentes (13.12.2018)



Orson Welles dizia que um diretor de cinema era na verdade uma espécie de administrador de acidentes. Interpreto isto como um cara que vai esbarrando em imprevistos à medida que avança, mas consegue assimilar esses imprevistos e encaixá-los no projeto. E de repente até consegue usá-los como trampolins para a imaginação, ou rotas de fuga para fora de um impasse narrativo.

Tem gente que acha que o cinema profissional é excessivamente planejado e burocratizado – eu, por exemplo. Mas ele precisa mesmo ser assim, porque é sujeito a uma quantidade injusta de incógnitas e de variáveis.

São trinta, cinqüenta, cem pessoas (com transporte e alimentação para todos), toneladas de equipamento, de materiais diversos. Uma logística complexa que tem necessidade de sol, ou de chuva, ou de vento, ou de mar agitado, não importa: numa filmagem (que não seja em estúdio) sempre se tem necessidade de que no dia de amanhã a Natureza se comporte exatamente assim.

Lembro de novo a história de que Nelson Pereira dos Santos arribou-se do Rio de Janeiro com sua equipe para ir rodar Vidas Secas na Bahia, mas quando chegou lá tinha chovido, o Sertão estava num verde constrangedor. Nelson hospedou todo mundo, mexeu nuns papéis, escreveu, rascunhou, e eles fizeram Mandacaru Vermelho pra não perder a viagem.

Um cineasta que depende do tempo, inclusive meteorológico, é uma espécie de lavrador, sempre de mão à testa, perscrutando o horizonte. Tal como o plantador, ele precisa de uma conjunção de conveniências que não dependem dele.

Isso é na escala mais ampla, mas na escala miúda do dia de filmagem as coisas não são diferentes. O movimento de câmera imaginado não vai ser possível por uma razão técnica qualquer, e a cena tem que ser concebida de novo, de improviso, com a equipe toda esperando.

Uma história do folclore de Hollywood fala da demora de Chaplin para resolver uma cena crucial de Luzes da Cidade, onde ele precisava fazer com que a vendedora de flores, que era cega, pensasse que o vagabundo Carlitos era um sujeito rico. A equipe ficou ganhando diárias e devorando quentinhas durante dias e mais dias até que o diretor teve o “eureca!” e filmou a cena. (Ele fez o vagabundo atravessar uma rua com o sinal fechado passando por dentro de uma limusine com o banco de trás vazio; ao ouvir a porta da limusine batendo, a cega pensa que ele é o dono do carro.)

Alguns diretores são extremamente minuciosos no roteiro justamente para evitar esse tipo de ocorrência; para reduzir ao máximo a chance de um imprevisto. Alfred Hitchcock e Luís Buñuel eram famosos pela exatidão do seu planejamento. Hitchcock desenhava tudo em storyboards com tal precisão que, se quisesse, bem poderia ir para casa e deixar que um assistente qualquer coordenasse a filmagem em si. Buñuel fazia apenas um take de cada cena, para economizar negativo, o que deixava os montadores de cabelos brancos, porque se um daqueles takes se perdesse não teriam um take alternativo para substituí-lo. Roberto Farias era um diretor meticuloso e prático: Walter Carvalho conta que em Os Trapalhões no Auto da Compadecida praticamente todos os planos filmados foram usados no filme.

Não se pode aplicar os critérios de um cinema produzido assim a um outro tipo de cinema onde uma equipe pequena sai para a rua com duas ou três páginas de diálogos e de indicações, rabiscadas à mão. Esta é um sistema que não apenas está pronto para acolher o imprevisto, mas também faz dele um ingrediente essencial.

A definição de Orson Welles citada no início poderia ser modificada então para “administrador de imprevistos”, porque existem também os acidentes positivos, que vêm para ajudar, e não para atrapalhar. Tudo que não é previsto pode gerar numa tensão num filme de preparação muito rígida, mas pode ser uma resposta bem vinda num tipo de produção que não se importa de acolher o que lhe cai do céu.

E não só nesse tipo. Stanley Kubrick, durante a produção de 2001, uma Odisséia no Espaço, estava encalacrado com o problema da famosa sequência em que o computador HAL se rebela contra os astronautas e tenta assumir sozinho o controle da missão.

Kubrick precisava mostrar que os dois astronautas, interpretados por Keir Dullea e Gary Lockwood, conspiram entre si para desligar HAL, mas este toma conhecimento do plano. Foi Lockwood quem sugeriu a Kubrick a idéia de que os astronautas se trancassem numa pequena cápsula para discutir o assunto, com o sistema de som desligado, mas o computador fosse capaz de ler os seus lábios, o que é indicado com movimentos laterais da câmera (ponto de vista de HAL) para a boca de um e do outro, alternadamente.

Idéias dos atores são bem vindas quando de fato se enquadram no tom do filme e contribuem para o roteiro. O ator Rutger Hauer, que faz o andróide Batty em Blade Runner de Riddley Scott, foi um entusiasta do filme desde o início, um dos que mais acreditavam  estar trabalhando num futuro clássico do cinema. A cena da morte do andróide no final, na cobertura de um prédio banhado pela chuva, murmurando lembranças das batalhas que presenciou, e soltando uma ave que sobe voando ao céu, foi em grande parte uma contribuição do ator, assimilada e incorporada pelos roteiristas e pelo diretor.

Quando existe esse tipo de sintonia entre diretor e elenco, qualquer imprevisto pode ser transformado de acidente em efeito. No filme Django Livre de Quentin Tarantino há uma cena famosa em que Django e seu comparsa estão jantando na mesa de um fazendeiro (Leonardo DiCaprio) do qual pretendem roubar uma escrava. O fazendeiro acaba descobrindo; fica furioso, ergue-se na mesa e começa um discurso violento contra os visitantes e contra os negros em geral.

Na empolgação do discurso, DiCaprio, que segurava uma taça de vinho, quebrou a taça sem querer e deu um corte fundo na mão, que começou a sangrar, mas ele continuou “no personagem”, sem interromper a cena, e o diretor também mandou seguir. Ele esfregou a mão ensangüentada no rosto da escrava, e subiu o tom do discurso enquanto envolvia a mão num lenço. O pequeno acidente acabou tornando a cena melhor do que era, devido à capacidade de improvisação do ator e à percepção do diretor – que se fosse um cara menos experiente talvez tivesse gritado: “Corta!” ao ver o acidente.

Estes exemplos são exemplos extremos. Cada dia de filmagem, desde o mais caro blockbuster de super-heróis até um curta-metragem feito por estudantes, está cheio de exemplos dessa dimensão aleatória do cinema , cuja essência pode ser definida mais ou menos assim: É indispensável planejar, e é indispensável estar aberto para o que não pôde ser previsto.



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