quinta-feira, 7 de julho de 2016

4131) Downton Abbey, Temporada 1 (7.7.2016)



Fui ver a primeira temporada dessa série de TV a cabo (Netflix), em parte por curiosidade e em parte por pesquisa. Minha época favorita na literatura e no cinema é a chamada Era Vitoriana. Depois dela, somente a era Pós-Vitoriana, que é justamente esta aqui. Os ano 1910. Aquele teatro social meticulosamente enredado em rituais, convenções, compromissos, proibições, obrigatoriedades. Talvez as pessoas daquele tempo não tenham sido assim mais do que nós mesmos somos hoje; mas, assim como não percebemos os roteiros que seguimos agora cegamente, eles também não percebiam os deles.

Quando comecei a ver a série percebi que ela era um spin-off, uma consequência ao mesmo tempo mercadológica e dramatúrgica do filme Assassinato em Gosford Park (2001), ótimo filme de Robert Altman interferindo meio americanamente numa típica história policial britânica. O famoso “country house mystery” ou “cozy mystery”, o mistério aconchegante. Uma casa de campo onde nobres, burgueses e seus criados interagem em várias tramas complexas de assassinato, inveja, romance, traição.

Gosford Park foi escrito por Julian Fellowes. O novo milênio trouxe reviravoltas econômicas e políticas no mundo, nenhuma das quais foi maior do que a Era da Hegemonia dos Roteiristas, um título que não ocorreria ao mais ousado autor de pulp fiction. Uma vitória mais improvável do que a da Revolta dos Sapateiros. Hoje, pelo menos na TV, há roteiristas que comandam o show, não são o roteirista de estúdio, que recebe encomendas vindas de cima e de desincumbe o melhor que pode. São autores com cacife para conceber os arcos narrativos, com possíveis finais igualmente fortes, e capaz de escrever (às vezes até se meter a dirigir) qualquer tipo de cena para mostrar como deve ser feito.

Séries que gostei e que têm diferentes medidas dessa receita foram True Detective, Breaking Bad, Game of Thrones, Arquivo X, conceitos narrativos que pertenciam mais aos que escreviam do que aos que estavam dirigindo. Quem diria que os roteiristas seriam os mamíferos, após o reinado sáurio dos produtores e diretores!

Julian Fellowes ganhou um Oscar de Melhor Roteiro Original com o filme de Altman, e alguns anos depois emplacou essa série que ele escreve, em princípio, sozinho, com várias pessoas dirigindo os episódios. Não tem o ritmo mais agitado de Altman, mas a própria quantidade de personagens a leva a ter narrativa rápida, mesmo com muitos quadros estáticos. Bons diálogos, cenas curtas, uma certa compressão narrativa que não exclui o suspense de manter situações que só se resolvem ao longo de vários capítulos.

O SBT tinha uma novela chamada Os Ricos Também Choram. O filme-sobre-aristocratas-britânicos acaba sempre revelando, não se sabe se por descuido ou se é por planejamento, que apesar de tudo eles são humanos “como nós”. Só que têm mais dinheiro, e uma espécie de hipnotismo que os domina sempre que certas palavras mágicas são pronunciadas. Eles chamam a isso “valores”, “conceitos”, “premissas inquestionáveis” e outras palavras vagas. No mundo deles, há certas frases que são como a lâmina da guilhotina. Depois que ela cai, de nada adianta subir de novo. Está feito.

Downton Abbey é o mundo dos livros de Henry James, aquele pessoal muito paparicado, muito advertido, muito preparado, muito imbuído das responsabilidades de sobrenome, dinastia, tradição. Aqueles salões sociais à base de intrigas sussurradas, alianças e armagedons, maquinações políticas e armadilhas amorosas. Só que, no presente caso, nada de melodrama ou folhetim. Ao contrário. Tudo à base de inuendos, nuances, entendimentos duplos, deslocamentos de sentido, elipses, síncopes subentendidas.

Era o mundo de Machado de Assis, também. Ressalvando a faixa aquisitiva, a latitude, o pedigri de nobreza, mas era também o da nossa Corte um mundo de salões, de ceias, de recepções, de valsas, de leques, de olhares dissimulados, de cochichos entre patrões e agregados, de coisas que não se deve dizer, de coisas em que pode-se apenas pensar o tempo todo.

Esse clima predominava talvez no tempo vitoriano. O que vemos em Downton Abbey é a continuação disso, o desagregar disso numa certa modernidade onde há uma permeabilidade social maior. Uma das coisas interessantes do seriado são as diferentes maneiras como ele mostra personagens incomodados pelos papéis sociais que precisam exercer, personagens recusando-se a entrar num jogo de fingimentos. Desconfortáveis com sua persona pública ou com as cobranças feitas a ela.

O filme onde Julian Fellowes testou a fórmula com sucesso, Gosford Park, tinha (conforme foi encomendado pela produção) algo de Agatha Christie: a labiríntica mansão, os ricos ruidosos, os criados vigilantes, um corpo na biblioteca. Cronologicamente, no entanto, Downton Abbey está menos para o tempo de Lady Agatha do que para o de Sherlock Holmes, que é de uma geração anterior. A primeira temporada da série de TV vai do afundamento do Titanic em 1912 até a declaração da guerra à Alemanha em 1914. Sherlock Holmes tinha 60 anos quando essa guerra começou. Poderia ter sido um hóspede eventual em Downton Abbey; era a época do seu último adeus.

Em Downton Abbey, a série, se reproduzem os mesmos vasos sociais comunicantes que havia em Gosford Park, o filme. A série é talvez mais emproada, mais cintura-dura, mas a comparação com Altman pode ser injusta. São concepções diferentes: um filme de duas horas e uma série com oito episódios na temporada de estréia. Os dois anos de peripécias dos oito episódios da primeira temporada dariam material folgadamente para uma das nossas novelas em horário nobre, uma novela de duração mediana.

Ao que tudo indica (não gosto de saber spoilers, então me informo pouco) Downton Abbey não deverá ter derrapagens na direção do fantástico, será uma ópera sabão-em-pó de época. A época tinha seu charme e tinha sua sombra. Para cada fidalgo da família de Lord Grantham há um servo seu ou serva sua que está sempre por perto, com fidelidade, rapidez e silêncio. Parece até que cada Dorian Gray tinha um retrato ambulante aos seus pés, definhando para servi-lo. Ou que cada doutor Jekyll tem como servo um Mr. Hyde, ou vice-versa. Não é o caso, me parece. Tudo indica que a dramaturgia será realista até o fim.  Mas por que o romance histórico seria menos nobre que o romance fantástico?


Acabei sabendo que na vida real Highclere Castle, o belo prédio onde se desenrola a narração estritamente realista de Downton Abbey, é um castelo que pertenceu a Lord Carnavon, o financiador da descoberta do túmulo de Tutankhamon, e uma das vítimas mais famosas da famigerada Maldição da Múmia. Fiquei sabendo também que alguns dos seus interiores serviram para as cenas do ritual erótico onde Tom Cruise se infiltra de penetra, em De Olhos Bem Fechados (2001) de Kubrick. São dois precedentes ilustres do quais o previdente Fellowes pode lançar mão para muleta de plot, caso um dia comece a faltar assunto.





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