terça-feira, 29 de dezembro de 2015

4009) A ditadura do normal (29.12.2015)



O sujeito mora num país dominado por uma ditadura burocratizada. É de noite, ele está meio perdido num bairro miserável, periférico, tentando voltar para casa. Tenta passar despercebido. E nessa hora ele pensa: “Não que houvesse algum regulamento contra o regresso ao lar por um caminho diferente, mas isso bastava para chamar a atenção da Polícia do Pensamento”.  O trecho é de 1984 de George Orwell, e ele ilustra um princípio básico dos governos totalitários: “Por que esse camarada está fazendo algo de um jeito diferente?”.  

Isto lembra uma velha frase: “Na ditadura o maior perigo não é o ditador, é o guarda da esquina”. Se quem manda no país é Stálin ou Papa Doc, qualquer guarda de esquina pode fazer naquela rua o que bem entender. Quem decide não é o ditador, é ele, é a veneta dele, a idiossincrasia dele, o mau humor ou o bom humor dele. O perigo da ditadura é que todo guarda de esquina é, em sua pura essência, o próprio Stálin ou o próprio Papa Doc.

Vejam como são efêmeras as ditaduras. Papa Doc, o vampiro do Haiti, já foi o símbolo do Mal, na minha juventude. Apodreceu, caiu, foi substituído pelo filho Baby Doc, um gordão cheio de cordões de ouro no pescoço. Baby também foi pro espaço, e aqui estou eu, vivinho da silva, a usá-los como metáforas de si mesmos. Só o Haiti que não mudou. Ficou como aqueles personagens vampirizados que nem a estaca no coração de Drácula consegue recuperar para o mundo dos vivos.
Os sistemas de segurança têm (como vemos em 1984) bons exemplos de técnicas para fazer os dissidentes botarem as unhas de fora, esticarem as cabeças, tornarem-se visíveis e vulneráveis à guilhotina da repressão. A ditadura mais eficiente é a que é controlada por tecnocratas, sujeitos de imaginação basicamente analógica e de caráter basicamente à venda.  O totalitarismo exige previsão, planejamento, controle do futuro. É preciso saber não apenas onde Winston Smith está neste exato momento, como ser capaz de prever onde Winston Smith deverá estar no dia 16 de maio do ano que vem, e fazendo o quê. Tabular as médias, e assinalar os desvios.
Num quadro de controle como esse, o simples ato de voltar para casa por um caminho diferente chama a atenção, é indício de comportamento conflitante. Como no conto de Ray Bradbury “O pedestre”, em que não é propriamente proibido andar a pé pela calçada – mas é estranho, e o sujeito deve ser recolhido e submetido a tratamento. Ou como em O estrangeiro de Albert Camus, onde a certa altura o cara não sabe se está sendo julgado porque matou um homem a tiros ou porque não chorou no enterro da mãe, não se comportou como a maioria das pessoas se comporta.




2 comentários:

Adilson Silva Didil disse...

Gosto do jeito como esse cara escreve, é um craque.Queria ter um amigo assim.

Adilson Silva Didil disse...

Gosto do jeito como esse cara escreve, é um craque.Queria ter um amigo assim.