sábado, 2 de maio de 2015

3803) Livros interferidos (2.5.2015)



(ilustração: Ekaterina Panikanova)

Artes plásticas e literatura são primos distantes que de vez em quando passam férias na casa um do outro. Já falei aqui do artista Tom Philips, cujo livro-obra A Humument (1970) é famoso. Philips pegou um romance vitoriano achado num sebo e interferiu no texto com aquarela, nanquim, lápis de cor, etc., deixando intactas algumas frases e palavras, que, lidas no novo contexto, acabam contando uma nova história. O próprio título já é uma mutilação do título original, A Human Document. O livro, de W. H. Mallock (1892), é uma obra em domínio público. Cada página pintada por Philips sobre o texto original é uma pequena obra de arte em si. Fui agora dar uma olhada no saite (http://www.tomphillips.co.uk/humument) e vi que já existem cinco edições de A Humument, cada uma delas com novas páginas recriadas.

A russa Ekaterina Panikanova faz algo um pouco diferente. Ela pega uma certa quantidade de livros, abre-os em uma página qualquer e os arruma, abertos, em filas e colunas, como quadrados do xadrez. E usa isso como se fosse uma tela, pintando (aplicando colagens, desenhando, etc.) quadros bem amplos, com cada um dos livros abertos recebendo apenas um detalhe da pintura geral. Alguém pode lamentar que os livros sejam inviabilizados para a leitura, mas a verdade é que ela inutiliza apenas um exemplar de cada um, o que não é nada diante dos milhões de livros que vão direto para o lixo todo dia. E o trabalho é uma beleza, como pode ser visto aqui: http://tinyurl.com/mp8qqxl.

A própria literatura interfere fisicamente no livro impresso. O romancista Jonathan Safran Foer pegou em 2010 o livro do alemão Bruno Schulz, A Rua dos Crocodilos (segundo ele, o seu livro favorito) e, onde Tom Philips usou técnicas da pintura, ele as usou da escultura. As páginas do exemplar original foram recortadas, com trechos inteiros retirados (com gilete e estilete, imagino), fazendo com que pelas aberturas aparecessem frases de páginas mais adiante misturando-se às da página aberta. Este pequeno clip do YouTube (http://tinyurl.com/mwtenoq) dá uma idéia do resultado final.

Um livro (dizia Borges) não é uma explicação do universo, é apenas um objeto a mais adicionado a ele. O fato do livro de papel resultar num objeto o transforma de produto em matéria-prima. Vira material de recriação para quem tiver imaginação e paciência não só para criar, mas também para fruir a obra resultante. Obras desse tipo são uma contribuição interessante ao debate sobre livro eletrônico e livro de papel, mostrando que este último, mesmo passivamente, pode ser interativo de muitas maneiras, basta ter uma boa idéia e técnica para executá-la.


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