domingo, 16 de dezembro de 2012

3058) Bandeira e Sinhô (16.12.2012)






No curto espaço de dois anos, foram lançados no Rio de Janeiro dois livros que, usando um artifício histórico parecido, tentaram analisar o modo como no começo do século 20 o samba deixou de ser visto com preconceito e hostilidade pelas elites cariocas e passou a ser aceito como uma manifestação legítima da cultura popular, e mesmo como uma espécie de símbolo do povo brasileiro.

Em 1995, saiu O mistério do samba de Hermano Vianna, em que ele faz essa análise da aproximação entre os dois Rios de Janeiros a partir de um encontro famoso entre Gilberto Freyre (representante da cultura letrada, acadêmica, elitista) e Pixinguinha (representante da música popular mas com conhecimento suficiente para se ombrear com um erudito). Em 1996, André Gardel publicou o trabalho com que ganhou o Prêmio Carioca de Monografia: O encontro entre Bandeira e Sinhô, em que trata das crônicas de Manuel Bandeira em que este se refere ao sambista Sinhô, e os numerosos pontos de convergência biográfica, boêmia e poética entre os dois.

O livro de Hermano Vianna é mais conhecido, mas o de André Gardel faz também um retrato fascinante do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século 20. Naquele tempo, o samba horrorizava tanto quanto o baile funk horroriza hoje. Misturar-se com ele era sinal de grave contaminação plebéia. Bandeira se misturava; não sozinho, mas acompanhado de amigos como Jaime Ovalle, Villa-Lobos, Catulo da Paixão Cearense, Di Cavalcanti, todos eles mergulhados na boemia insone das madrugadas, das rodas de samba, dos cafés, dos bordéis, dos bares da Lapa.

Gardel faz uma aproximação cuidadosa e veraz da poética de Bandeira, maculada propositalmente pela “fala errada do povo”, pela musicalidade das ruas que entra pelas janelas abertas à noite; e do modo como Sinhô, que espertamento tornou-se o primeiro a gravar um samba, sabia estar presente na cidade inteira ao mesmo tempo, cantando, compondo, bebendo, conversando, divulgando seus trabalhos, tornando-se conhecido, angariando encomendas de sambas ou de marchinhas de carnaval.

Gardel assim descreve as figuras encarnadas pelos dois: “a erudição modernista com um pé na tradição poética do Ocidente e o outro nas vanguardas européias, e a cultura de massa popular em flerte com a indústria cultural, com um pé no folclore e o outro na contemporaneidade rítmico-melódica da música moderna urbana das Américas”.  Encontros como os de Gilberto Freyre com Pixinguinha e de Bandeira com Sinhô prefiguraram o que seria o século 20 – a lenta aproximação entre essas duas culturas, entre essas duas bandas de uma “cidade partida”, e entre os dois Brasis que esses artistas cautelosamente representam.


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