sexta-feira, 7 de setembro de 2012

2970) Anedota búlgara (7.9.2012)


(Drummond jovem)


Faz muito tempo que os czares saíram da paisagem política do mundo, e periga uma boa parte dos jovens de hoje não terem a menor idéia do que significa essa palavra. Ela deriva, aliás, do título de “César” que os imperadores romanos passaram a se atribuir em homenagem a Julio César; o termo gerou “Czar” em russo e “Kaiser” em alemão. Mas no tempo em que Carlos Drummond publicou seu primeiro livro, Alguma Poesia, ou seja, em 1930, os czares tinham desaparecido há bem pouco tempo, mais precisamente em 1917, quando a Revolução Russa não apenas os arrancou do poder mas fuzilou sumariamente a família inteira, crianças inclusive. Os czares foram no século 19 um símbolo da sofisticação e da gastança desbragada de todos os potentados. O Museu Hermitage, em São Petersburgo, é um resíduo da riqueza cultural patrocinada pelos czares, cujos equivalentes no mundo de hoje seriam os xeiques de Dubai e seus palácios de mil-e-uma-noites high-tech. 

Em todo caso, Drummond não se referia aos czares da Rússia, mas aos da Bulgária, em seu poema “Anedota Búlgara”, que diz: “Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. / Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, / ficou muito espantado / e achou uma barbaridade”. A Bulgária teve seus próprios czares até 1943, quando morreu o último deles, Bóris III, que era apenas oito anos mais velho do que o próprio Drummond. Não deve ser ele o personagem do poema, pois consta que era um bom sujeito, tendo inclusive peitado Hitler durante a II Guerra e se recusado a permitir a extradição de judeus.

O poema de Drummond, com sua malícia inocente, é uma polaroidezinha da psicologia desses potentados. Um poderoso cria sua própria escala de valores, seus próprios dez mandamentos, sua própria declaração dos direitos do homem. Ao invés de ser um sujeito apenas sádico, ele mistura sadismo e humanismo e os projeta em direções inesperadas. A biografia de qualquer imperador mostra que até os piores entre eles têm qualidades e virtudes que seríamos capazes de admirar em alguém. Mandam matar milhões numa guerra, mas protegem as artes e as ciências; são cruéis com os súditos mas são maridos carinhosos e pais dedicados; e assim por diante. O czar drummondiano é um personagem de cartum retratando, com a aparente ingenuidade de uma pintura de Chagall, essa deformação de perspectiva. Não é muito distinto de outros personagens do mundo de hoje: torturadores que ouvem Mozart, ditadores que financiam bienais de arte, pedófilos que são bons chefes de família, bilionários capazes de deixar anêmica a economia de um país e depois dar-lhe de presente uma dúzia de creches.

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