sábado, 26 de fevereiro de 2011

2490) Drummond: “Poema do jornal” (26.2.2011)



A TV nos acostumou ao conceito de ver as coisas “ao vivo”. Copa do Mundo ao vivo era uma sensação, para quem antigamente escutava pelo rádio, e somente dias depois via as imagens (péssimas) na TV e tinha que esperar semanas ou meses pelo Canal 100. Mas a Internet nos acostumou ao conceito de “tempo real”, que é a mesma coisa, mas com uma distinção importante. A TV ao vivo dá uma sensação de imagem coletiva, compartilhada pelo mundo. A Internet em tempo real, por ser no computador, dá a sensação de que alguém está transmitindo aquilo só para mim. Lembro que na Guerra do Iraque, em 2003, passei uma madrugada inteira acordado, acompanhando no computador uma imagem “em tempo real” da invasão da cidade natal de Saddam Hussein, cujo nome agora me escapa. Num carro (ou num tanque?) a câmara percorria uma longa estrada, cruzava um portal, enfiava-se pelas ruas... E eu sem sono, acompanhando aquilo.

Um dos sintomas da Modernidade é a contemporaneidade com os fatos através da telecomunicação. O primeiro sinal disso na obra de Drummond é o “Poema do jornal”, do livro Alguma Poesia, onde essa idéia explode logo nas primeiras linhas: “O fato ainda não acabou de acontecer / e já a mão nervosa do repórter / o transforma em notícia”. Por um lado, é o triunfo da tecnologia, da capacidade de integrar as vidas pessoais à comunicação global. Por outro, é o conúbio duvidoso entre o crime e a notícia, porque a simultaneidade entre os dois é tão grande que desperta a nossa desconfiança. Se o sujeito estava tão presente ao fato, por que não o impediu? Continua Drummond: “O marido está matando a mulher. / A mulher ensangüentada grita. / Ladrões arrombam o cofre. / A polícia dissolve o meeting. / A pena escreve”.

Vejam que maravilhosos anacronismos, rupturas do espaçotempo. Os gerúndios se amontoam, tudo acontece no tempo presente: o crime, o grito, o arrombamento, e enquanto isto quem escreve não é o teclado do notebook, é “a pena”, a boa e velha pena abastecida em tinteiros do século 19. Modernidade e tempo-do-onça comem e bebem na mesma mesa, na poesia modernista. Será que Drummond escrevia com uma pena? Será que no tempo dele caneta-tinteiro era high-tech? (Aliás, vale registrar que o anglicismo “meeting”, na linguagem da época, era o que hoje chamamos de “manifestação” ou “ato público”).

O poeta encerra dizendo: “Vem da sala de linotipos a doce música mecânica”. Os linotipos, ao que parece, entraram em nossa imprensa por volta das décadas de 1880-90. Eram high-tech, quando “Alguma Poesia” foi impresso. Imagino que Drummond terá experimentado a mesma sensação que eu sentia aos 15 anos quando descia à oficina do jornal em que trabalhei e via aquelas máquinas imensas, sentia o cheiro de chumbo derretido, e escutava o estralejar contínuo das pequenas linhas-de-tipo sendo compostas. Aquilo era quase ficção científica; hoje seria, no máximo, uma nostalgia steampunk.

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