terça-feira, 25 de maio de 2010

2076) A literatura e o jogo (3.11.2009)



Num artigo na revista eletrônica Salon (http://tinyurl.com/mwo2sy), D. A. Blyler comenta os vícios de pessoas criativas (bebida, drogas, etc.) e a certa altura discute a questão de jogo. Será que o vício de jogar prejudica a criatividade de escritores e outros artistas? Curiosamente, parece que o jogo (baralho, dados, roleta, etc.) vem perdendo terreno para outros vícios. Cem anos atrás, era tido como um dos principais “fatores de desagregação da sociedade”. Hoje em dia, critica-se a proliferação dos bingos, das máquinas caça-níqueis, etc., mas apenas em termos da formação de quadrilhas e da desonestidade do jogo em si (as máquinas são preparadas para que o usuário sempre perca, etc.). Mas o jogo como vício do indivíduo vem perdendo terreno. Conheço gente viciada em bebida, em drogas, numa porção de coisas, mas não lembro de nenhum conhecido meu que seja viciado em jogos de azar.

Já foi diferente, e acho que na literatura o maior exemplo de gênio viciado em jogo foi Dostoiévski. Dizem que seu romance O Jogador é o melhor retrato literário desse universo soturno, à meia-luz, saturado de café e cigarros. O jogo produz uma droga biológica chamada norepinefrina. É um desses casos curiosos em que a droga viciante não é ingerida pelo viciado, é produzida pelo seu próprio organismo desde que o viciado se submeta a esta ou aquela atividade. (Vejam artigo “O Jogador”, de 13.5.2003, em meu blog: http://tinyurl.com/yguo4r2).

Blyler cita um cruel provérbio francês que diz bem do caráter precipicial dessa atividade: “Existem dois prazeres no jogo: o de ganhar e o de perder”. E a frase da Mark Twain (que, pelo visto, era chegado a um carteado): “Existem dois momentos na vida de um homem em que ele deve apostar tudo: quando pode, e quando não pode”. Blyler discute o lado positivo de “ter mentalidade de jogador”, e cita como exemplo elogiável o caso (que não sei se é verdadeiro) do jovem Steven Spielberg, que teria se infiltrado num estúdio de Hollywood, montado um escritório e começado a se comportar como se fosse funcionário do estúdio, começando assim uma carreira de sucesso.

Isso, no entanto, pra mim não conta. É um lance de ousadia profissional, talvez ligeiramente criminoso (“falsidade ideológica”?...), mas na selva de Hollywood vale quase tudo. Jogo, pra mim, é jogo-de-mesa. Aquilo que fez o filósofo Diderot dizer: “O mundo é a casa dos fortes. Nunca saberei, senão no fim, o que perdi ou ganhei neste lugar, neste vasto cassino onde passei mais de 60 anos, copo na mão, chacoalhando os dados”. O jogo serve como atividade lúdico-masoquista, e também como metáfora da condição humana. Sempre estamos jogando, ou seja, depositando todos os nossos esforços em ações sempre sujeitas ao Acaso, ao Improvável, à combinação de variáveis que raramente podemos prever e mais raramente ainda podemos controlar. Um lance de dados nunca abolirá o Acaso, mas, como dizia Fritz Leiber: “gonna roll the bones!”.

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