segunda-feira, 8 de março de 2010

1760) Burroughs, o memorioso (30.10.2008)



(Augusten Burroughs)

O conto de Jorge Luis Borges “Funes, o memorioso” fantasia a possibilidade de existir um ser humano com memória total, alguém que gravou com exatidão (e pode evocar com facilidade) cada momento de sua vida, cada imagem, cada som, cada sensação. Funes era assim: um rapazola que vivia num quarto dos fundos, jogado num sofá, com olhos entreabertos, mas seu mundo mental era mais intenso que o de cem pessoas somadas. Qualquer minuto do seu passado lhe era instantaneamente acessível, e mais: ele podia comparar um som escutado aos seis anos com outro escutado aos quinze, e justapô-los na mente para melhor examiná-los.

Quem diz ser assim também é o norte-americano Augusten Burroughs. Seu livro de memórias Running with Scissors despertou controvérsias e um processo judicial. Burroughs jura de pés juntos que de fato lembra tudo aquilo de que diz se lembrar. Talvez sem a precisão absoluta de Funes (que afinal não passa de uma criação imaginária), ele não obstante diz, durante uma entrevista ao jornalista Sam Anderson, que sua memória borbulha de lembranças sem parar. “Lembro-me de quando tinha oito meses de idade, na minha cadeira alta. Lembro-me de quando aprendi a andar. Lembro do exato som produzido pela colher-de-pau numa panela de alumínio, no fogão.”

Durante a entrevista, realizada num bairro onde morou na juventude, ele continua sendo assaltado por imagens. “É como se o tempo passado estivesse depositado em camadas superpostas sobre o presente,” diz ele. “Lembro-me de ver um pintor, com camisa da marinha, calças brancas, cinto marrom, botas pretas, pintando a porta de um apartamento do outro lado da rua. Lembro da lona branca forrando os degraus de pedra, lembro do modo como a luz batia nele”.

O jornalista fica em dúvida. Será que ele não está inventando? Inventar, qualquer um inventa, se tiver imaginação e cara-de-pau. Burroughs também confessa não lembrar uma porção de coisas: o número de um apartamento onde morou, os filmes que viu num cinema (embora lembre do tapete desfiado do saguão). Leves imprecisões como estas dão um ar de honestidade ao restante.

Dias depois da entrevista, Anderson escreve para Burroughs perguntando do que ele se recorda sobre o encontro que tiveram, e relata: “Ele me respondeu com um texto de 1.200 palavras, citando frases específicas que dissemos ao cruzar uma esquina, e quais os carros que passavam na rua nesses momentos; qual a mão que usei para arrumar minhas anotações na mesa do restaurante; os nomes dos meus filhos; o design do meu relógio e do meu anel. Tendo estado lá durante cinco horas de conversação, achei seu relato, mesmo com uma ou outra palavra incorretas, muito persuasivo”. Memória total é talvez impossível, mas memórias precisas como a de Burroughs são provavelmente muito mais comuns do que se imagina. Só tomamos conhecimento delas quando, além da memória, o indivíduo tem também a capacidade de escrever livros. Nem sempre as duas coisas coincidem.

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