segunda-feira, 8 de março de 2010

1762) Delany e o romance (1.11.2008)





(Samuel R. Delany)

Um romance é um conjunto de instruções verbais que nos permitem criar mentalmente uma história. Ao ler essas instruções, visualizamos pessoas, situações, ambientes. Acompanhamos ações e peripécias. Temos acesso ao que se passa na mente dos personagens. 

O norte-americano Samuel R. Delany, além de romancista, é um crítico literário e professor de literatura com formação estruturalista, e aborda a linguagem com um rigor que deixa perplexos os leitores mais desavisados. Diz ele, por exemplo: 

“Um romance é uma imagem modificada quarenta e nove mil, novecentas e noventa e nove vezes”.

Delany está usando aqui o cálculo convencional que considera 50 mil palavras a extensão média de um romance. O que ele nos diz, em suma, é que cada nova palavra lida pelo leitor deve trazer uma informação nova, que expanda a imagem que ele tinha até então. 

Um texto literário é uma série de informações em que cada informação nova tem o poder de modificar o significado de tudo que veio antes dela, mesmo que esse significado já parecesse cristalizado, pronto, definitivo. 

Delany se refere a “palavras”, mas eu deixo barato: digamos “frase”. Cada frase de um romance deve fazer “cair uma ficha” na mente do leitor, uma ficha que não tinha caído até então.

Outra frase de Delany, que complementa e aprofunda a anterior, diz: 

“Uma história é um remanejamento de miríades de micro-memórias em uma nova ordenação”. 

Essas miríades (=dezenas de milhares) de micro-memórias são tudo que assimilamos ao longo da leitura – o que lembramos dos personagens, das situações, dos eventos. Isto é importante porque não há dois leitores que tenham, durante a leitura, a mesma imagem mental do que ocorre num conto, quanto mais num romance com centenas de páginas. 

Algumas, entre esses milhares de micro-memórias, vão sendo ativadas por cada novo trecho lido, levando-nos a tirar conclusões e a organizar em nossa mente “o que é o livro”, que história é aquela que está sendo contada.

Surge daí aquela velha máxima de que quando pegamos para reler um livro ele sempre “mudou” desde a primeira vez. É claro! 

Se eu li Vidas Secas ou O Senhor Embaixador quando tinha 25 anos, tenho uma idéia razoavelmente correta do que é o livro, de seu enredo, peripécias, como começa, como acaba, o que se sucede aos personagens. Sem falar na linguagem, no “tom”, na voz narrativa. 

Mas quem me garante que, relendo estes livros hoje, eu terei a mesma impressão? Os milhares de micro-memórias que formei durante a primeira leitura se dissiparam. Deixaram uma marca em minha lembrança, mas uma a marca que poderá perfeitamente ser invalidada por uma nova leitura, e substituída por outra muito diferente. Minha reação a cada frase, hoje, poderá ser muito diferente da primeira. 

O livro mudou, não porque as frases impressas na página tenham mudado, mas porque o livro não é aquele conjunto de frases, o livro é o que acontece na minha cabeça quando eu as leio.





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