segunda-feira, 8 de março de 2010

1763) Machado: Adão e Eva (2.11.2008)



(Machado, por Loredano)

O cético Machado era chegado a umas parábolas cujo efeito sobre o clero de seu tempo não sei avaliar. Usava de forma desabusada a mitologia bíblica, torcendo-a a seu proveito, desconstruindo-a de uma maneira simpática, até mesmo para não inquietar as leitoras de revistas da época, que provavelmente cultivavam um cristianismo meio talibanesco. Contos como “A Igreja do Diabo” e este “Adão e Eva” deviam provocar algum desconforto.

Daí que este comece e acabe da maneira mais pacata, com um pós-jantar comodamente burguês em que a dona da casa oferece um docinho aos convidados, estes enveredam por uma dessas discussões ociosas que condizem com barrigas cheias, até que o dr. Veloso, o juiz-de-fora, se atreve a sugerir que o episódio do Paraíso Terrestre não teria ocorrido como a Bíblia o relata. Surpresa de todos, e o dr. Veloso passa a descrever como teria sido o Gênesis. Para ele, coube ao Demônio, e não a Deus, a criação do mundo. Em vez de Deus criar algo e o Tinhoso introduzir-lhe imperfeições, é o contrário. O Diabo é que cria um mundo inóspito e agressivo, e cabe a Deus melhorá-lo.

O Diabo, portanto, criou Adão e Eva, ambos belos, mas sem alma, e “só com ruins instintos”. Deus sabotou-lhe a obra dando alma ao casal, além de “sentimentos nobres, puros e grandes”. A inveja do Diabo o leva a emparceirar-se à Serpente, para que esta o ajude a recuperar suas criações. Passa-lhe as instruções, que são as que já sabemos; e cabe à Serpente um eloqüente parágrafo de sedução, em que descreve a Eva todas as mulheres em que se tornará no futuro, caso conceda provar do fruto: Cleópatra, Dido, Semíramis, Safo... Eva a escuta, e abana a cabeça: não, não e não. Adão aproxima-se, escuta também a Serpente, e confirma: comer aquilo, de jeito nenhum.

Nesse instante os céus se abrem e, mandado por Deus, surge o arcanjo Gabriel, com seu “elmo de diamante, que rutila como um milhar de sóis”. Este elogia a firmeza dos dois, e anuncia-lhes que tendo passado na prova subirão para o Paraíso propriamente dito. “A Terra que deixastes, fica entregue às obras do Tinhoso, aos animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar impuro, à vida dos pântanos”.

Assim o dr. Veloso conclui sua narrativa, que deixa perplexos todos os comensais, menos Frei Bento, o carmelita, “que conhecia o juiz-de-fora como um dos mais piedosos sujeito da cidade, e sabia que era também jovial e inventivo, e até amigo da pulha, uma vez que fosse curial e delicada; nas cousas graves, era gravíssimo”.

Nesse juiz-de-fora penso reconhecer um pouco do próprio Machado, se não o do convívio, pelo menos o da escrita, que não recusava a pena da galhofa. “Adão e Eva” sugere que o pecado da Ciência salvou a Terra de continuar para sempre um matagal inóspito e um covil de feras. Cedendo à Serpente e à curiosidade, nosso casal de avós povoou o mundo e trouxe todas as coisas boas que habitam nele, a par com as ruins.

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