quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

1701) Machado: “A Chinela Turca” (24.8.2008)


(Machado, por Spacca)


Talvez uma das razões que fizeram de Machado de Assis um escritor de enredos minimalistas, quase inexistentes, seja o fato de que ele viveu numa época parecida com a nossa, quando os enredos veementes, fantasiosos, cheios de peripécias, faziam as obras de sucesso popular. 

O espaço hoje ocupado pelo cinema e pelas telenovelas pertencia, no tempo de Machado, ao romance em folhetins e ao melodrama teatral; e é contra esses dois moinhos de vento que ele investe em “A Chinela Turca” (em Papéis Avulsos, 1882), mais com “a pena da galhofa” do que com “a tinta da melancolia”. Releia o conto, e veja o quanto eram familiares ao nosso escriba os recursos do melodrama.

É noite. O bacharel Duarte está se aprontando para ir fazer cerca-lourenço a uma namorada, quando irrompe-lhe em casa o major Lopo Alves, com a notícia de que acaba de compor um drama. Duarte não tem como negar atenção ao major, e concorda em submeter-se à leitura, que é um suplício: 

Nada havia de novo naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do autor. O mais eram os lances, os caracteres, as ‘ficelles’ e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismo desgrenhado. 

Peripécias absurdas se sucedem. Duarte cochila, e de repente vê que o major guarda os papéis e sai.

Então... surpresa! Entra-lhe de casa adentro um homem que anuncia ser da polícia, acusa-o do roubo de uma chinela turca, e o conduz sob protestos a uma mansão onde Duarte entra de olhos vendados, encontra um padre misterioso, e é levado a um salão, na presença de uma dama belíssima. 

Um homem de arma em punho anuncia-lhe que terá de casar com a dama, fazer um testamento deixando-lhe tudo que possui, e em seguida beber “certa droga do Levante”. Duarte recebe a inesperada ajuda do padre (que lhe sussurra: “Não sou padre, sou tenente do exército”). Pula pela janela, foge pela escuridão da noite, perseguido pelos esbirros da mansão, entra por uma casa, e ali vê o Major Lopo Alves lendo um jornal, “cujas dimensões iam-se tornando extremamente exíguas”... O Major profere a última fala do seu drama, e encerra a leitura.

O jornal que vira folha de manuscrito é o mesmo hipopótamo do delírio de Brás Cubas, que se reduz às dimensões de um gato real. Durante a leitura de uma peça maçante, Duarte viajou mentalmente para uma aventura tão “ultra-romântica” quanto o drama do major, porém mais conforme com seu momento emocional e com a existência de uma namorada inacessível. E ele conclui dizendo: “O melhor drama está no espectador e não no palco”.

Duarte substitui a fantasia melodramática do Major por uma de sua própria lavra; Machado ironiza as duas, mas reconhece a necessidade terapêutica de fantasiar, a vantagem de substituir “o tédio por um pesadelo”. Mas na frase final do conto cifra o que seria sua literatura da madureza: o romance do espaço interior, romance da mente, romance do discurso verbal que a move, o romance de personagem, e não de peripécia.





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