sábado, 17 de janeiro de 2009

0758) Eu era feliz e não sabia (23.8.2005)




Quando eu era pequeno, Ataulfo Alves era um dos compositores mais conhecidos no país, algo como Martinho da Vila hoje em dia. Suas músicas tocavam o tempo todo, todo mundo queria gravá-las. 

Uma das mais conhecidas é a canção nostálgica em que ele relembra sua cidade natal, Miraí (MG), com versos simples e emotivos: “Eu daria tudo que tivesse pra voltar ao tempo de criança... Eu não sei por quê que a gente cresce, se não sai da mente essa lembrança”. 

Ele recorda o ambiente da cidadezinha, as pessoas que sumiram no tempo: “Que saudade da professorinha que me ensinou o b-a-ba... Onde andará Mariazinha? Meu primeiro amor, onde andará?” E termina: “Eu igual a toda meninada, tanta travessura que eu fazia! Jogo de botão sobre a calçada... Eu era feliz e não sabia!”

Este verso final incorporou-se à nossa linguagem cotidiana, virou uma parte do falar brasileiro, e não sei de honra maior para um verso escrito por um indivíduo. Dizemos isto a propósito de tudo, a propósito de qualquer situação passada que na hora não parecia grande coisa mas que, quando a vemos em retrospecto, a gente sente uma falta danada. 

Certa vez, quando participei da criação de motes para o Congresso de Violeiros de Campina Grande, propus o mote: “A gente só é feliz / quando não sabe que é”. Era no tempo em que o Congresso lotava o Ginásio da AABB com milhares de estudantes. Éramos felizes, e não sabíamos.

Ataulfo parece sugerir que existe um certo conflito entre a felicidade e a consciência desta felicidade. Quando estamos totalmente absorvidos por êxtases ou epifanias, não sobra muito tempo para botarmos as mãos nos bolsos e pensarmos, “puxa vida, que momento legal este!” 

Parece sugerir também que esse tipo de felicidade só existe na infância, naquele momento em que já somos grandes o bastante para fruir com intensidade as coisas boas da vida (Mariazinha, o jogo de botão, etc.), mas não sabemos ainda das desilusões e dos sofrimentos que nos aguardam mais adiante.

Basta pegarmos a máquina-do-tempo, no entanto, para percebermos que não é bem assim. Lá está Ataulfinho, de calção, sentado na calçada, jogando botão em cima de uma tábua e vendo Mariazinha pular corda ali perto: a saia subindo e descendo... 

Esta é a imagem que lhe ficará na memória meio século depois, mas ao retornar àquele instante específico ele sente virem à tona uma horda de coisas ruins que já esquecera. A prova de Geografia amanhã, para a qual não estudou nada. A ameaça feita por Zezim da esquina de dar-lhe uns cascudos por causa de uma guerra aérea de corujas. O pai, que vive adoentado, gemendo, recusando-se a tomar remédio e dizendo que “não é nada”. Os dez tostões a mais que pegou do troco da bodega e que a mãe anda procurando em altas vozes por dentro de casa. 

Felicidade? Claro. A felicidade é a memória passada a limpo, expurgada dos “quatrocentos golpes” que nos ferem e nos magoam a cada dia. Só se é feliz hoje muito tempo depois.





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