quarta-feira, 6 de agosto de 2008

0491) A indústria dos super-heróis (15.10.2004)



Como muitos garotos da minha classe social e da minha geração, passei grande parte da minha infância com o nariz enterrado em gibis de histórias-em-quadrinhos. Alguns eram inevitáveis: Superman, Batman, Mandrake, Fantasma. Outros eram menos conhecidos, como “C. B.” (“Crime Buster”, criado por Charles Biro). Ao mesmo tempo, movido pelo entusiasmo de todo mundo lá em casa pelo charadismo e pelas palavras cruzadas, eu devorava com aplicação livros e mais livros sobre Mitologia Grega, desde as aventuras dos personagens do Picapau Amarelo (O Minotauro, Os 12 Trabalhos de Hércules) até o Dicionário da Fábula de Chompré e a Enciclopédia Delta-Larousse.

Não relato isto por mera nostalgia, nem para me gabar da variedade de minhas leituras (e ainda precisa?), mas apenas para comprovar de novo o que vou dizer agora. A indústria cultural é o novo folclore. Aquilo que há 3 mil anos era produzido pelas pessoas em volta das fogueiras, em bate-papos na pracinha, ou em histórias mirabolantes passadas de boca-em-boca no zum-zum-zum das feiras e dos mercados, é hoje uma indústria que movimenta bilhões de dólares e envolve milhões de pessoas. Folclore profissional, remunerado. Criação industrial de mitologias.

Saem de campo Hércules, Ulisses, Perseu, Sansão, Thor e Siegfried, e entram os X-Men, o Homem Aranha, o Demolidor e o Spawn (além dos citados acima). O processo de criação desses tipos continua a ser semi-inconsciente (existe algo mais semi-inconsciente do que a indústria cultural?), feito às pressas, sem preocupação com verossimilhança ou qualidade. Se em nossa vida real precisamos de heróis, em nossa vida imaginária precisamos de super-heróis, de semideuses, só que agora eles têm de ser semideuses com a credibilidade avalizada pela genética, pela energia atômica, pela percepção extra-sensorial, e por outros pretextos que, aos olhos do leitor comum, não se distinguem muito da Magia.

Na cena inicial do filme Highlander (o que deu origem à série sobre espadachins imortais que se enfrentam ao longo dos séculos) vemos um ringue de luta de tele-catch, onde aqueles sujeitões musculosos e peludos se agarram uns aos outros e fingem que estão brigando. Um espectador afasta-se dali, e ao chegar à garagem é atacado por outro: são dois highlanders, e o que vemos em seguida é um duelo mortal, a sério, entre dois guerreiros pra valer. Esta seqüência inicial é a melhor de toda a série, e expressa muito bem esta dualidade entre heróis de mentira (o tele-catch) e heróis de verdade (os highlanders). Vistos daqui de fora, são os highlanders que são os heróis de mentira, os que sabemos que não existem mas que, encenando suas brigas de mentirinha, encarnam nossas aspirações de grandeza e coragem. A diferença é que o que antigamente era feito por um processo espontâneo, pessoal e descentralizado de criação de tipos e de histórias, hoje tem o suspeito perfil de uma indústria lucrativa e deliberada.

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