segunda-feira, 7 de abril de 2008

0351) Calvino e a leveza (5.5.2004)



(Foto de Gustavo Moura - detalhe)

Em Seis propostas para o próximo milênio (Cia. Das Letras), Ítalo Calvino examina algumas características que em sua opinião a literatura atual deveria incorporar à literatura dos próximos séculos.

Seriam seis conferências a se realizar na Universidade de Harvard (Massachussets, EUA); Calvino morreu antes de redigir a úlima que se intitularia “Consistência”.

As demais foram escritas mas não chegaram a ser apresentadas: “Leveza”, “Rapidez”, “Exatidão”, “Visibilidade” e “Multiplicidade”. Um belo cardápio de valores estéticos, que aconselho à leitura e à reflexão.

Tomemos a leveza. Calvino não a transforma num valor absoluto, e reconhece duas vocações legítimas na literatura: “uma tende a fazer da linguagem um elemento sem peso”, e “a outra tende a comunicar peso à linguagem”. Ele ilustra estas tendências, respectivamente, com a obra dos poetas florentinos Guido Cavalcanti e Dante.

Na poesia do primeiro ele encontra entidades que o fascinam porque: 1) são levíssimas; 2) estão sempre em movimento; 3) são vetores de informação. Não é coincidência a semelhança com a figura do deus Mercúrio (comentado aqui em “O deus das coisas certas”, 10.3.2004, e em “Os heróis esquizóides”, 30.4.2004), o deus de asinhas nos pés e nos capacetes, protetor dos viajantes, dos mercadores, dos oradores e literatos. Calvino não esquece a materialidade das coisas, mas confessa-se fascinado pelo fato de que “o mundo repousa sobre entidades sutilíssimas”.

Cyrano de Bergerac, Swift e Giacomo Leopardi são alguns autores em que Calvino situa a metaforização da leveza a partir do século 18. A literatura se exprime em termos da astronomia, da libertação à força da gravidade, da conquista do espaço celeste como uma vitória.

Diz ele: “É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma”. A leveza não é uma negação da materialidade do mundo, mas um uso consciente dessa materialidade para libertar-se o mais possível de suas limitações.

Penso que a leveza procurada por Calvino pode ser vislumbrada também na ginástica olímpica: argolas, barras assimétricas, cavalo, exercícios de solo... Corpos que se projetam no espaço usando o próprio peso como força propulsora.

Capoeiristas e dançarinos de “break” também desenvolvem essa técnica de projetar o corpo com um impulso inicial e em seguida “capitalizar” esse impulso, mantendo-o ativo com o emprego mínimo de pequenos esforços. Com imensa economia de gestos, vemos esses corpos executarem piruetas e cambalhotas, parecendo prestes a libertar-se por completo da gravidade.

Sondas espaciais que percorrem o sistema solar também fazem o mesmo, projetando-se rumo ao campo gravitacional de um planeta, sendo aceleradas por ele, e a seguir desviando-se com uma propulsão mínima de foguetes e seguindo em frente, numa série de “quedas” calculadas. A literatura de Calvino, também, parece aproximar-se da materialidade do mundo apenas para pegar impulso e decolar rumo ao espaço mágico que lhe é próprio.






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