sexta-feira, 15 de julho de 2022

4843) A resposta na ponta da língua (15.7.2022)

 


Quando os Beatles desembarcaram pela primeira vez nos EUA, em 1964, deram mil coletivas de imprensa. Um jornalista perguntou:
 
– Por que a música de vocês deixa as pessoas tão excitadas?
 
Houve um segundo de hesitação no grupo, e John Lennon disse:
 
– Não sabemos. Quando descobrirmos, vamos criar um novo grupo e ser empresários deles.
 
Os Beatles tinham uma enorme capacidade de improvisar respostas ao vivo. Não eram as respostas espertas, ensaiadinhas, das coletivas de hoje em dia. Hoje, todo artista tem alguns publicitários criativos em sua equipe, que lhes entregam uma lista das prováveis perguntas e das respostas espirituosas que ele deverá decorar para “ter na manga”.
 
E nos “encontros com a imprensa” de hoje, há, muitas vezes, um jornalista arraia-miúda a quem foi fornecida uma pergunta para ele fazer na hora H, servindo de “escada” ao artista, em troca de dois convites para o show. (Se eu fosse empresário de artista rico, subornaria jornalistas sem o menor remorso. Quem se vende é porque não vale nada.)
 
Os ingleses chamam de repartee a frase espirituosa dita num repente. Funciona tão bem que dá a impressão de que a pergunta (que era uma provocação) fica parecendo uma “deixa” para o cara exibir a resposta que trazia prontinha.
 
Não trazia. É improviso mesmo. Naquela mesma coletiva, alguém pergunta: “Quando vocês vão cortar o cabelo?” e George Harrison responde de bate-pronto: “O meu eu cortei ontem.”
 
É resposta decorada? Não. Provavelmente era verdade. Claro que os Beatles aparavam aquelas trunfas, principalmente antes de estrear uma turnê grande. E muitas vezes a verdade é a última coisa que se espera numa resposta assim.
 
O improviso espirituoso não é apenas uma resposta inteligente, é uma resposta que depende totalmente do modo como a pergunta foi feita. Muitas vezes a graça implica em distorcer o sentido de algum termo da pergunta. Nessa mesma coletiva (ou em outra) perguntaram aos Beatles: “Como vocês acharam a América?”. A pergunta, é claro, indagava sobre o estado de espírito dos fãs, à sua chegada. Lennon respondeu: “Virando à esquerda quando chegamos na Groenlândia”.



Bob Dylan, na sua fase sarcástica e sardônica de 1966 (aquilo que hoje está sendo chamado de “The Cate Blanchett Period”) era outro que não deixava por menos. Um pomposo entrevistador perguntou-lhe uma vez:
 
– Você tem idéia do alcance de suas canções?...
 
E ele disse:
 
– Olhe, tem as que alcançam três minutos, outras alcançam cinco, e outras, acredite se quiser, alcançam os dez ou doze minutos.
 
Muitos dos nossos melhores repentes, essas respostas instantâneas capazes de guilhotinar uma pergunta em um segundo, surgem assim porque já tínhamos pensado naquela pergunta e em nossa cabeça se formou, se não a resposta pronta e definitiva, pelo menos uma idéia de como essa resposta deveria ser.
 
Uma expressão francesa, “esprit d’escalier”, indica aquelas ocasiões melancólicas em que essas respostas arrasadoras, espirituosas, só nos ocorrem quando estamos na escada, indo embora da festa. Não importa. Perguntas embaraçosas ou provocativas costumam se repetir. A gente guarda a resposta boa. Eu já preparei uma resposta assim e guardei por mais de 25 anos; quando a pergunta veio, tirei-a do bolso sem pestanejar, e a mesa inteira aplaudiu.



G. K. Chesterton tem um ótimo livrinho de contos interligados, The Club of Queer Trades (1905), em que os personagens inventam profissões extravagantes, maneiras bizarras de ganhar a vida em Londres. A certa altura, menciona-se um cara que é “o Shakespeare do dito espirituoso”, a alma das festas, o cara que tem sempre uma frase engenhosa para desarmar o interlocutor.
 
Conto vai, conto vem, ficamos sabendo no final que esse cara espirituoso é apenas um dos clientes de um sujeito que prepara conjuntos de frases-e-respostas, e numa ocasião social qualquer, combinadamente, dá as “deixas” para que o cliente (qualquer um que pague bem) pronuncie sua frase de espírito e faça o maior sucesso. É a profissão dele: Facilitador de Respostas Espirituosas.
 
“Armações” à parte, a resposta de bate-pronto existe, e cada um de nós já presenciou inúmeros exemplos. Políticos mineiros são especialistas nisso: Tancredo Neves, Benedito Valadares, José Aparecido de Oliveira...


(busto de Antonio Marinho em S. José do Egito, foto BT)
 
Os cantadores nordestinos são, além de poetas, repentistas, ou seja, são capazes de raciocínio rápido e resposta perfeita. Conta-se que o mestre Antonio Marinho, de São José do Egito, tinha um compadre chamado Irineu. Um dia estava em casa e a esposa do compadre lhe surge à janela da rua, perguntando:
 
– Compadre Antonio, o senhor viu Irineu?...
 
E ele:
 
– Não. E fôro?...
 
É o tipo da coisa que só é engraçada na pronúncia dialetal sertaneja. “O senhor viu irem n’eu? (=irem em mim)?” – “Não!... E foram?!...”
 
O genro de Antonio, o famoso Lourival Batista, era um dos gatilhos-verbais mais rápidos do Nordeste. Lá vinha ele caminhando despreocupado pelas ruas de São José, quando um conhecido o saudou de longe, acenando da calçada oposta:
 
– Tudo bem, “Lourivarrr”?...
 
E ele, impassível:
 
“Regulal”...
 
São gracejos que ninguém poderia “trazer pronto” para responder no momento adequado; é algo concebido e executado no espaço de segundos. Nenhum de nós tem a verve repentística de Marinho ou de Louro, mas pode se dedicar à nobre arte de prever perguntas e preparar respostas.
 
E nesse aspecto lembro um caso contado pelo meu saudoso amigo Arievaldo Vianna, que vinha cruzando uma praça e dele se aproximou um doido que perambulava por ali pedindo dinheiro. O doido chegou e disse:
 
– Me dê uma grana pra provar que está com Deus. Se Deus estiver do seu lado, um bandido bota a arma na sua cabeça, aperta o gatilho, a arma encrenca e não dispara.
 
Arievaldo:
 
– Sim, mas e se a arma for novinha, e disparar?
 
O doido:
 
– Então é porque você estava pronto pra ir ao encontro de Deus!







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