segunda-feira, 27 de junho de 2022

4837) "O Cavalo de Turim" (27.6.2022)



Béla Tarr é um diretor húngaro famoso por seus filmes lentos, de planos longos e complexos. O último deles, O Cavalo de Turim (2011, em parceria com Agnes Hranitzky, sua esposa, e montadora de seus filmes), está no YouTube – com ótima imagem e legendas em português.
 
Aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=uR4IdLrR3I8&t=636s
 
O filme narra sete dias da vida de um velho e sua filha numa casa de pedra, numa região remota e árida, batida por um vento gelado o dia inteiro. Com diálogos raros e curtos, presenciamos o cotidiano dos dois, as tarefas domésticas, o trabalho de rachar lenha, preparar comida, lavar roupa, levar o cavalo e a carroça até o povoado vizinho (que nunca aparece).


Num filme de Béla Tarr, são comuns planos de oito ou dez minutos, sem diálogo, com pouca ação, câmera parada. E no entanto esses planos não são vazios ou monótonos (pelo menos para mim). Parecem-me carregados de vida interior e de significado. Por que será? Porque o diretor é famoso, é premiado? Nem tanto, porque há dezenas de outros, mais famosos e mais premiados do que ele, por cujos filmes não dou um vintém.
 
Aquele mundo pedregoso em preto-e-branco parece um pouco o sertão de Cabaceiras, mas um sertão gelado, uma caatinga dos ventos uivantes, um Vidas Secas em que uma batata cozida é refeição bastante. O velho tem o braço direito “morto” e precisa ser ajudado para se vestir e outras tarefas, mas é obstinado e incansável em seu trabalho com a carroça e o cavalo. A moça também não pára: arruma, cozinha, lava, pega água, acende fogo.



E de vez em quando um dos dois senta à janela e fica olhando o nada lá de fora, enquanto a ventania canta. E a câmera não se mexe.
 
A trilha sonora do filme é hipnótica, porque reproduz os assobios e os uivos do vento em loop, e qualquer coisa insistentemente repetida em loop acaba ganhando uma espécie de significado musical, assim como um pedaço de imagem arrumado em  forma de “ladrilhos” ganha algum tipo de simetria e parece conter intenção estética.
 
Existe algo de Samuel Beckett e de Esperando Godot nesse casal lacônico. Eles parecem ter uma amnésia ao contrário: são o inverso daquelas pessoas que esqueceram o passado. Eles esqueceram o futuro. Repetem todos os dias os mesmos gestos, e só sabemos que o dia é outro porque a câmera desta vez está numa posição diferente.
 
“Para alguns a vida é interminável, e o que é interminável não tem mais sentido. Como encontrar o tempo de viver? Para outros, a vida terminou antecipadamente. Chegou ao fim antes de começar. Ela se desenrola numa espécie de fita abstrata, excluindo qualquer dimensão temporal. Algumas vidas fazem assim, inutilmente, o sacrifício de seu fim, e perdem até a lembrança de sua origem.”
Jean Baudrillard (Cool Memories, 1980-1985, Rio: Espaço e Tempo, 1987)
 (trad. Mauricio Carvalho Lyrio)
 

E, tal como os dois vagabundos de Beckett, eles recebem uma visita. Um vizinho vem comprar um pouco de aguardente. E despeja sobre eles uma torrente de palavras que resumem seu desespero frio com o que os donos do mundo fizeram com ele: “Pôr as mãos, adquirir, finalmente degradar”. É um monólogo de cerca de cinco minutos, em que o casal escuta e não diz nada.
 
Lembra o monólogo de Lucky, em Godot, uma torrente de palavras que brota como um iceberg no meio de uma história lacônica e introvertida.



A segunda grande interrupção na rotina é a chegada de uma carroça de ciganos que estão indo embora daquela região, e que trazem um relâmpago de vida e de algazarra. É como se num filme de Bergman (naquelas ilhas pedregosas e inóspitas de Bergman) chegasse uma caravana de saltimbancos de Fellini. Eles usam toda a água do poço, convidam a moça a acompanhá-los “para a América”, riem, falam sem parar, e somem na poeira.
 
O Cavalo de Turim tem esse título devido ao episódio que (reza a lenda) desencadeou a loucura final do filósofo Nietzsche. Ele teve uma crise nervosa em Turim, ao ver um cavalo cansado ser chicoteado por seu dono. Béla Tarr e o roteirista Laszlo Krasznahorkai se perguntaram: “E o que aconteceu com o cavalo, depois que o filósofo foi levado embora?”



O cavalo aparece em todo seu vigor e toda sua beleza na magnífica sequência inicial do filme, em que o velho dispara sua carroça pela estrada, voltando para casa. É uma explosão de vitalidade que aparentemente esgota todas as forças de ambos, porque daí em diante, deixam-se consumir pela apatia. O próprio cavalo recusa-se a comer, como um “Bartleby, o Escrivão”, o personagem de Herman Melville que de uma hora para outra resolve não fazer mais nada.
 
É como se um ataque gradual de entropia, de perda de energia vital, se abatesse sobre aquele lugar (o vizinho, em seu monólogo, atribui isto ao rumo que o mundo inteiro está tomando). A água seca. O fogo se apaga. A lamparina recusa-se a ser acesa. A natureza parece estar deslizando devagar para a morte térmica.
 
Béla Tarr pertence à escola de Ingmar Bergman, Robert Bresson, Andrei Tarkovsky. Uma escola geralmente minimalista, de planos longos e bem trabalhados, elencos reduzidos, simplicidade rigorosa. O Cavalo de Turim é uma fábula das existências que ficaram pelo meio do caminho quando uma parte do mundo enriqueceu. Como um tripulante que caiu no mar durante a noite, e o navio foi embora sem dar pela falta dele. 





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