sexta-feira, 9 de março de 2018

4323) "O Ministério do Tempo" (9.3.2018)




A série de televisão espanhola El Ministério del Tiempo, disponível no Netflix, é uma variação interessante da idéia genérica de uma espécie de polícia ou comando transtemporal, desde as variadas “patrulhas do tempo” da pulp fiction até a Intempol brasileira, uma criação de Octavio Aragão com numerosos e engenhosos desdobramentos.

Sem falar nos vigilantes do Tempo de narrativas como O Fim da Eternidade de Isaac Asimov, que voltam séculos no “elevador temporal” para afastar um objeto meio metro da posição em que estava, e fazer com que a História sucedesse assim, e não assado.

Cito esses exemplos literários porque é com eles que El Ministério del Tiempo é aparentada, e não com o seriado Túnel do Tempo, um dos clássicos da TV norte-americana de nossa meninice. No Túnel, os cientistas estão ricocheteando aleatoriamente por entre os séculos. No Ministerio, (quase) tudo está sob controle, e eles cruzam a porta que bem escolhem para cumprir uma missão definida com clareza.

A série tem vários pontos interessantes, porque suas idéias de paradoxo temporal, por exemplo, são propostas e resolvidas sem forçar a barra, mas com certa simplicidade.  Os autores querem usar as convenções do gênero para contar suas histórias. Não há muita preocupação em fazer upgrade das convenções.

Uma boa porta de entrada para entender a série é sua frase de divulgação, que diz algo como: “Todos os Governos têm segredos. O governo da Espanha só tem um. Mas é dos grandes.”

A Espanha não tem toda a parafernália tecnológica ou científica da América? Basta-lhe ter um gimmick de bom tamanho: a espiral de corredores subterrâneos que guardam as Portas do Tempo, algo muito natural numa cultura milenar de cabalistas, alquimistas, um plausível universo detentor de sabedorias ocultas e milenares.



Basta isso. E a noção bastante cômoda de que há milhares de portas levando ao passado, às vezes ao dia exato do fato que se deseja modificar (ou proteger), outras vezes a uma distância suficiente para gerar protelações, atrasos, suspense.

Em termos de efeitos especiais hightech, a série tem muito poucos, e suas qualidades de produção se dão na reconstituição de fases históricas onde caem nossos paraquedistas vestidos de camponeses ou de fidalgos e com celular no bolso. Ou seja, como ambientação visual está mais para o gênero histórico do que para a FC hard.

Há um momento tocante em que um viajante no Tempo diz a outro: “Eu vi a Invencível Armada, agora pode se acabar todo o resto”. Os emissários temporais cruzam com escritores, inquisidores, cavaleiros, peralvilhos, religiosos, militares, artistas: o Passado inteiro da Espanha. Ou melhor: uma versão oficial desse passado, pela qual eles precisam zelar.

A televisão e o cinema sempre usaram fartamente aquele recurso que Lincoln Cunha chamava “as duplas dialéticas”, dois temperamentos opostos e complementares em perpétuo atrito e gravitação mútua. Holmes e Watson, Quixote e Sancho, Billy e Wyatt de Easy Rider, Ratso e Joe Buck de Midnight Cowboy.

Parece que agora estão emergindo as tríades. Os roteiristas resolveram encarar de frente o Problema Dramatúrgico dos Três Corpos.

A tríade da série espanhola é composta por Julián, um paramédico da Madrid de hoje; Amélia, uma estudante brilhante de Barcelona no século 19; e o soldado Alonso, espadachim calejado do século 16. Por um lado ele é a reserva duelística do grupo, pois luta com eficiência e honra; e funciona também como foco mais divertido dos mal-entendidos e dos anacronismos.

A série tem perseguições, fugas, lutas de vida ou morte, mas em momento algum acreditamos que algum daqueles personagens periga morrer. As Leis de George R. R. Martin dificilmente serão votadas naquele universo. Isso não impede que eles sejam vulneráveis em outros aspectos, e se tornem menos previsíveis.

A verdade é que se alguém tiver acesso ao próprio passado vai querer remexer, sim, ninguém resiste. Aí estão milhões de páginas de FC para comprovar.

A certa altura um personagem diz: “Bela profissão esta nossa. Vivemos arriscando a vida e viajando ao passado para impedir que um famosão qualquer morra. E as pessoas da família da gente a gente tem que deixar morrer, não pode nem levar um antibiótico para quem está na Idade Média.”

É a preocupação da jovem historiadora de Connie Willis em O Livro do Juízo Final (Suma de Letras, 2017). Caída de paraquedas no ano da Peste Negra, ela, mesmo vacinada, percebe que talvez não possa salvar as pessoas de quem ficou amiga.

Como a maioria das séries norte-americanas de antigamente, nesta série espanhola há uma leveza, uma paz confortável, uma disposição lúdica nas aventuras dos viajantes. Há bastante humor nos diálogos, geralmente dando alfinetadas na Espanha de hoje.

Há um capítulo centrado no trio Garcia Lorca, Salvador Dalí e Luís Buñuel, com atores bastante verossímeis. Pensando no Buñuel deles me lembrei do Paris à Meia Noite de Woody Allen, onde aparecem todos aqueles artistas dessa geração. El Ministério del Tiempo tem um pouco desse filme no desfilar contínuo de personagens históricos, cercados de piscadelas e piadas em privado.

Diz-se que no seu auge o Arquivo X tinha uma fórmula de episódio chamada “O Monstro da Semana”. Toda semana surgia uma ameaça bizarra e insólita em Nebraska ou no Oregon, eles resolviam tudo naquele episódio. A série espanhola teria “O Ilustre da Semana”. Há episódios centrados em Lope de Vega, em Picasso, em Lazarillo de Tormes, em El Cid, e assim por diante.

Eu estava lendo num texto sobre Ingmar Bergman os comentários dele sobre seu filme Morangos Silvestres (1957). Bergman diz que visitando a casa de sua avó imaginou como seria, se ele pudesse empurrar aquela porta e ver a si mesmo na infância.

– Ocorreu-me que podia fazer um filme sobre isso: que você vem caminhando, num contexto totalmente realista, abre uma porta, e então você dá um passo e entra em sua própria infância, e ao abrir outra porta você está de volta à realidade.

Essa mesma mecânica simples (sem recorrer a complicações da Física) está à disposição dos agentes do Ministério. São centenas de portas, e toda vez eles precisam recorrer ao Manual para se certificar de que a melhor maneira de chegar a janeiro de 1587, por exemplo, é passando pela porta 614. As possibilidades, como sempre, são infinitas.












2 comentários:

Paulo Rafael disse...

Muito interessante o artigo, aproveitei a dica e comprei o livro de Connie Willis, ainda mais porque a tradução é de Braulio Tavares!

Anônimo disse...

Sobe viagem no tempo, indico fortemente o filme independente Primer.