quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

2421) “The Diamond Age” (8.12.2010)



Li apenas dois livros de Neal Stephenson, e é como se tivesse lido vinte. Faz tempo não vejo um autor capaz de tal densidade informacional por página. Nevasca (“Snow Crash”), publicado pela editora paulista Aleph, com 470 páginas, tem mais peso específico do que a “Trilogia da Fundação” de Asimov. E agora acabei de ler este outro, que em 499 páginas é capaz de equilibrar uma balança que tenha no prato oposto toda a obra de Charles Dickens. A comparação não é despropositada, porque Dickens é uma das grandes inspirações de Stephenson para este romance vitoriano passado no futuro. Um dos prazeres proporcionados pela FC é essa possibilidade de decolar em voos históricos e sociológicos de longo alcance. Os escritores realistas acham que a FC é minúscula porque estão caminhando a pé e dela só veem o risco branco no céu azul.

A época da história é mais ou menos o ano 2100, quando a humanidade controla a nanotecnologia a ponto de todo mundo ter em casa, assim como tem hoje um microondas, um “compilador de matéria”. Basta digitar as coordenadas e ele produz dentro de alguns minutos uma calça, um par de sapatos, uma cadeira... Há limitações tecnológicas que impedem este aspecto de virar uma “varinha de condão”. A parte principal da história ocorre na região que hoje é Shangai, então habitada por uma sociedade neo-vitoriana de lordes e damas sofisticadíssimos a ponto de não recorrerem aos “compiladores”: roupas, móveis, etc., são todos feitos à mão, coisas que só pessoas riquíssimas podem encomendar.

Um Lorde lamenta que a nova geração esteja ficando muito acomodada e encomenda, para a futura Rainha, a criação de um e-book que não apenas contenha toda a formação cultural necessária a uma menina pré-adolescente, mas também estimule nela um temperamento rebelde, contestador, quase subversivo. Essa tarefa cai para J. P. Hackworth, que produz um Super-Livro, uma mistura de e-book e console-de-games em que a garota lerá histórias, aprenderá qualquer técnica (desde artes marciais até idiomas estrangeiros) e ao longo dos anos irá formando seu caráter através das etapas sucessivas das aventuras de “Princesa Nell”, um gigantesco game educativo, em que contracena (falando) com atores contratados para isto.

A grande reviravolta, que ocorre a cerca de 1/3 do livro, é que Hackworth tira uma cópia clandestina deste Super-Livro, e ela vai parar nas mãos de uma menina pobre, que passa a ser educada por ele ao mesmo tempo que a Princesa. Não, leitor, não diga que já viu como vai terminar. Isto é só a ponta deste iceberg barroco-cinemascope (como dizia Brian Aldiss), que vai em muitas direções (todas surpreendentes e plausíveis) ao mesmo tempo. O futuro descrito por Stephenson é estonteante em sua riqueza, diversidade e coerência de detalhes. As aventuras são divertidas, e existe aqui um pouco mais de maturidade do que em Nevasca, outro excelente livro mas que às vezes parece feito apenas para garotos que jogam joguinhos.

4 comentários:

Mario Bag disse...

O "compilador de matéria" é parecido com Shmoo que Al Capp criou pros quadrinhos do Ferdinando Buscapé.
Abraço

Marco Maida disse...

Fiquei pensando no que falou sobre a capacidade da FC colocar as pessoas em condições que não são (necessariamente) a sua e propor uma forma para ela. Impressionou-me a "Erva do Diabo" de Castañeda quando tenta propor uma etnologia do mundo em estado de consciencia alterada. Existe uma diferença grande entre essas dus referencias: a FC trata com hipóteses que são recolhidas do presente e projetadas no futuro, mas e o mundo palmilhado em estado de consciencia alterada, qual é a referencia para ele? Huxlei tentou uma resposta no "casamento das portas do céu e do inferno", mas será que é suficiente? É possivel pensar que é um "lugar" essa percepção?
Abraços, Marco Maida

Braulio Tavares disse...

Mario: nunca fui um leitor assíduo de Buscapé e desconhecia esse detalhe... O compilador de matéria, com qualquer nome, é um sonho da fantasia transposto para a FC: a varinha de condão que gera coisas a partir do nada, a bolsa de dinheiro que nunca se esgota, o prato de comida que nunca se esvazia...

Braulio Tavares disse...

Marco: a mente não é um lugar, é o espaço virtual onde nossas percepções de lugares (reais ou imaginários) ficam registradas. Assim, um estado alterado de consciência distorce nossas percepções de lugar, e a FC superpõe percepções novas. Quem passa por essas duas experiências (EAC e FC) vê o real de maneira diferente.