domingo, 4 de julho de 2010

2225) O blues (25.4.2010)





(Mississippi John Hurt, por Douglas Egolf)

Alguém já disse que “blues” é qualquer canção que comece com a frase “I woke up this morning...” Se formos dar um balanço no gênero, vamos ver que milhares de músicas começam com essa frase, ou variantes. 

O blues é a crônica melancólica e reiterada de alguém que acorda mal, acorda sem forças e sem entusiasmo para começar um novo dia, acorda com a bateria descarregada. 

É o gênero musical preferido daqueles que, como Gregor Samsa, acordam de manhã sentindo-se o mais monstruoso e mais repugnante dos insetos, ou que, como Josef K., acordam de manhã com a sensação (geralmente justificada) de que o mundo inteiro conspira para encarcerá-los e destruí-los.

Existem dois tipos de pessoas. 

O Tipo A são aquelas cujo sono é repousante, restaurador das energias. Mal abrem os olhos, pulam da cama cheias de alegria e disposição, escancaram as janelas e gritam de braços abertos: “Bom dia, sol! Bom dia, mundo! Que coisa boa é estar vivo! Vamos à luta! Mais um dia maravilhoso vai começar! Mal posso esperar para fazer todas as coisas legais que estão à minha espera, inclusive resolver todos os problemas da minha vida, coisa que me dá indescritível prazer!!!” Tipo isso.

O Tipo B são aquelas pessoas que simplesmente wake up in the morning. Basta uma noite de sono para deixá-las exaustas, derrubadas, com a bateria descarregada a zero, pegando no tranco. Abrir os olhos é como abrir dois alçapões que dão acesso a um porão de cenas boschianas, dantescas. Para o Tipo B, o mundo é, como dizia Drummond, “um vácuo atormentado, um sistema de erros”. Seu corpo está embrutecido e sem forças, a mente destroçada e sem foco. Não lhe dirijam a palavra. O indivíduo do Tipo B acorda todos os dias numa situação de pós-operatório.

Os grandes bluseiros dizem que o blues é a música que os faz emergir desse pântano de desassossego e pessimismo. Percutindo as cordas, repetindo aqueles três acordezinhos intermináveis, num loop que gira eternamente sobre si mesmo, o bluseiro vai produzindo em si mesmo a energia que lhe falta, vai recarregando a bateria por esforço próprio, vai encadeando frases, riffs melódicos e outras pequenas coisas que acendem na treva do seu mundo um fosforozinho trêmulo de prazer estético. 

A palavra “blues” significa duas coisas ao mesmo tempo. Significa a depressão, a tristeza, o abatimento físico e moral de quem acorda extenuado e sem perspectivas, e significa a música criada nessas circunstâncias, para atenuá-las. Canta-se o blues para escapar ao blues. 

Ouso imaginar que a maioria das grandes canções de blues foram compostas por um sujeito de cuecas, barba por fazer, em jejum, de ressaca, sozinho em casa, sem dinheiro no bolso, e que acabou de despertar. 

Toda a sua energia lhe permitiu apenas abrir os olhos, passar uma ou duas horas pensando na vida e no dia que o aguardava, depois sentar na beira da cama, pegar o violão que estava no chão e começar: “I woke up this morning...”






Um comentário:

Luiz Lima disse...

ja que é a tematica, ha alguns anos atras escrevi um pequeno texto entitulado "o blues caiu no samba (e o samba ficou azul)", procurando estabelecer um paralelo entre essas duas matrizes, da musica americana e brasileira. deixo um link, se quiser dar uma sacada:

http://unseunhaseoutras.blogspot.com/2008/12/o-blues-caiu-no-samba-e-o-samba-ficou.html

abraço,
lola