domingo, 4 de julho de 2010
2226) Utopias e horrores (27.4.2010)
(Lúcifer, por Gustave Doré)
Isaac Asimov, num artigo famoso sobre vilões literários, comentou o Paraíso Perdido de John Milton dizendo: “O Satã de Milton é indomável mesmo derrotado, e apresenta lampejos de piedade, e por isto é um personagem interessante, enquanto que o Deus de Milton nunca se permite ser menos do que perfeito, e por isto é tedioso”. Isto me parece uma regra geral para a contraposição entre heróis e vilões. Os heróis populares de 50 anos atrás eram muito mais certinhos e mais politicamente corretos do que os de hoje. Deixaram de ser: vejam Batman, Superman, etc. O que causou essa mudança foi o fato de que o público – principalmente o público jovem, consumidor de filmes e de histórias em quadrinhos – começou a se impacientar com heróis muito bem comportados e a ficar fã dos vilões. Os vilões eram muito mais excitantes! Para recuperar o terreno perdido, os roteiristas e escritores tiveram que tornar os heróis mais complexos, dando-lhes traços de cinismo, uma certa crueldade, uma esperteza malandra, etc.
Quando um herói tem que ser um modelo de conduta, ele perde a liberdade – que é o que mais fascina o público jovem. A rapaziada começa a se interessar pelo vilão, porque este, sim, é livre, faz o que lhe dá na telha, não dá satisfações a ninguém, não tem medo de nada, não tem superego, não tem código de conduta... Leitores jovens são mais seduzidos por isto do que por um diploma de bom rapaz. Essa falta de liberdade implodiu os heróis clássicos, dando origem, principalmente nos quadrinhos, aos moralmente complexos heróis contemporâneos, com quem os leitores se identificam melhor.
Isto me lembra uma frase de Evelyn Waugh: “A mente humana é muito inspirada quando se trata de inventar horrores, mas quando se trata de inventar um paraíso ela mostra suas limitações”. Se dermos uma olhada nas Utopias clássicas da literatura, da poesia, do cinema, veremos que nenhuma delas se sustenta como algo plausível, e algumas chegam mesmo a se aproximar da Distopia, do pesadelo. Por outro lado, para inventar pesadelos nosso talento parece ilimitado. (Existe também uma espécie de consenso de que o Inferno de Dante é muito mais vívido, interessante, movimentado e bem escrito do que seu Paraíso).
A verdade é que a Realidade é muito mais próxima do Horror do que do paraíso ou da utopia. O propósito da ficção é alçar voo elevando-se desse horror, mas sabendo que o céu é inatingível. As coisas terríveis nos parecem mais vívidas, mais fáceis de imaginar e de assimilar porque são parte da nossa experiência real, ao passo que os paraísos são uma incógnita. Se pudéssemos visualizar o conjunto das literatura humanas em relação a esses dois extremos, veríamos que a maior parte do que criamos está bem mais próxima do pesadelo do que do paraíso, pelo simples fato de que o pesadelo é inteligível e tem abundantes exemplos, e o paraíso não. Nossas literaturas têm voo baixo: enxergam de longe o céu, mas mal conseguem se afastar do chão.
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