segunda-feira, 24 de maio de 2010

2068) Auto-ficção (24.10.2009)




O “Segundo Caderno” do Globo fez um grupo de matérias sobre literatura autobiográfica. Fiquei sabendo da existência da cidadezinha (13 mil habitantes) de Ambérieu-en-Bugey, na França, que se auto-intitula “Cidade da Autobiografia”. Foi ali que o pesquisador Philippe Lejeune instalou em 1992 a Associação pela Autobiografia e pela Preservação do Patrimônio Autobiográfico (APA), cuja missão é “receber, ler, comentar e preservar todo e qualquer escrito autobiográfico que lhe seja encaminhado”. Há um inevitável encontro anual que estimula o turismo e o comércio do lugarejo, mas o mais importante é que essa entidade não se volta para os autobiógrafos famosos. A APA recebe cerca de 180 textos por ano, dos quais 75% são autobiografias, 20% diários e 5% conjuntos de cartas, “cuja extensão varia de 20 a 13.000 páginas, geralmente (mas não apenas) escritos por pessoas nascidas nas décadas de 1920 e 1930”.

Lejeune é autor de um livro, O pacto autobiográfico (saiu no Brasil pela Editora da UFMG) onde diz que a autobiografia é um gênero “definido por um pacto, no qual o autor promete ao leitor contar a verdade a respeito de si e de sua vida”. Ora – como diria Pilatos, o que diabo é a verdade? É sobre este mais elusivo dos conceitos que a autobiografia funda seus castelos de palavras. Como confiar na verdade alheia, na palavra alheia? Eu próprio já defini autobiografia como “um livro em que um cara prova que quem tinha razão era ele”. O que há de fascinante na autobiografia é justamente que ela absorve todas as nuances possíveis da palavra “verdade”.

Diz Lejeune, com muita argúcia: “A autobiografia não é um texto onde alguém diz a verdade. Ela é um texto onde alguém diz dizer a verdade. Na prática, há portanto autobiografias perversas, lúdicas, brincalhonas etc. Mas essas perversões e desconfianças só podem existir no campo do discurso aberto pelo pacto autobiográfico. A ficção pode, de maneira interna, construir sistemas vertiginosos, mas é incapaz de fazer essa coisa simples, mentir, porque ela em momento nenhum promete a verdade”.

No Brasil, temos o Museu da Pessoa (http://www.museudapessoa.net/), que cumpre uma função parecida, e ao qual já recorri para pesquisar trabalhos. Meu maior problema era que baixava os relatos autobiográficos para checar dados, e passava a semana inteira lendo as vidas (fascinantes, surpreendentes, enriquecedoras) de gente anônima que fazia suas autobiografias em forma de entrevista. (Não sei se os critérios de Lejeune incluiriam esse formato; para mim, não há muita diferença). Coleridge falou que qualquer vida humana, bem contada, daria um belo romance. Talvez a vida de um cara como Pedro Nava, por exemplo, não tenha sido muito diferente da vida de seus companheiros de geração e de classe social, mas a questão é que Nava tinha uma observação arguta, uma memória imensa (cujas lacunas, sem dúvida, a imaginação supria) e uma magnífica capacidade de narrar.

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