quarta-feira, 12 de maio de 2010

2032) O “flâneur” de Baudelaire (12.9.2009)



O “flâneur”, segundo Baudelaire, é o cara que passeia sem compromisso e sem pressa pela grande cidade, registra tudo que vê, interessa-se por tudo que cruza seu caminho, entra em ruas desconhecidas, espia a vida alheia, envolve-se de maneira indireta com o que acontece à sua volta. Já foi definido como o primeiro grande personagem moderno e urbano, típico das nossas grandes cidades. Apesar de ser sido “fotografado” por um poeta, é um personagem do mundo do Romance, da narrativa em prosa em que ação, descrição, diálogo e digressão autoral se fundiram para criar o grande gênero literário urbano na segunda metade do século 19.

Há precedentes, e pensando em Baudelaire não há como não pensar em Edgar Allan Poe e seu conto-crônica “O Homem da Multidão”, a história de um velho misterioso que passa a madrugada caminhando a esmo pelo centro de Londres, abandonando um bairro mal o movimento começa a rarear, e indo às pressas para áreas da cidade em que, pela presença de cafés, restaurantes, etc., o vai-e-vem de pessoas nunca cessa. O homem da multidão é o primeiro mutante urbano, e carrega dentro de si (diz Poe) um crime não confessado, um segredo que não se pode revelar. Personagens misteriosos com este perfil estão no centro dos grandes romances de Balzac, Flaubert, Charles Dickens, Stendhal; e também nos folhetins popularescos (mas que não servem menos como radiografias da sociedade) de Eugene Sue e Ponson du Terrail. Na obra de escritores como Conan Doyle, Arthur Machen, G. K. Chesterton, Robert Louis Stevenson e outros a arte de caminhar pelas ruas à noite em busca de aventuras transformou-se num gênero literário que a crítica nunca formalizou, distribuindo essas obras por gêneros já existentes como “novela policial”, “romance de aventuras”, “histórias de terror” e assim por diante.

O “flâneur” é também o escritor-personagem, ou o personagem-escritor. Em How Fiction Works James Wood diz que este personagem baudelairiano vem do Frédéric Moreau, de Flaubert em Educação Sentimental, e prefigura o narrador dos Cadernos de Malte Laurids Brigge de Rilke. Diz ele: “Esse personagem é essencialmente um dublê do autor, é sua sentinela avançada: ele passeia indefeso, inundado por impressões. Anda pelo mundo como a pomba enviada por Noé, para trazer de volta seu relatório. A ascensão desse personagem está ligada à ascensão do urbanismo, ao fato de que esse gigantescos conglomerados de seres humanos despejam sobre o escritor, ou sobre seu preposto, enormes, espantosas quantidades de detalhes”. Wood associa esse personagem (que é “ao mesmo tempo uma espécie de escritor, sem ser escritor”) ao estilo moderno de narrar, o estilo livre indireto, em que autor e personagens observam juntos, reportam juntos, descrevem juntos, a tal ponto que o leitor não distingue (nem precisa distinguir) a qual deles se deve esta ou aquela observação.

Um comentário:

Nina Araújo disse...

Braulio,

Nesse texto você me fez lembrar de João Ubaldo Ribeiro no delicioso texto Aventuras do Calçadão, lá ele descreve um sujeito do "Clube dos Safenadinhos" que "flanava" em sua frente, na rota diária das caminhadas pelo calçadão, é hilário! E foi a primeira vez que eu vi essa palavra...
abraços de Nina.