segunda-feira, 10 de maio de 2010

2023) P. K. Dick e o Mercerismo (2.9.2009)



Que a ficção científica inventou novas ciências, todo mundo sabe. O que nem sempre é dito é que ela inventou também novas religiões, que existem apenas no âmbito dos livros em que aparecem. Uma das mais curiosas é a religião midiática (porque divulgada através de uma espécie de TV) do Mercerismo, imaginada por Philip K. Dick em seu romance Do androids dream of electric sheep?, que deu origem ao filme Blade Runner. O Mercerismo é uma das boas idéias do livro que infelizmente não puderam ser transpostas para o cinema, por motivos variados. E uma razão a mais para ler o livro, que, filme à parte, é brilhante.

No futuro imaginado por Dick, os animais estão quase todos extintos e são substituídos por andróides, criaturas artificiais. E entre a população se disseminou o culto a um indivíduo, Wilbur Mercer, que é uma figura crística, que se sacrifica pelo bem dos outros. Mercer era um garoto que tinha o poder de ressuscitar animais mortos ou reconstituir animais mutilados. Por causa disto foi perseguido e projetado numa enorme sepultura coletiva ao ar livre, num lugar indeterminado. Graças à presença de Mercer, os animais começaram a voltar à vida, e ele iniciou sua Ascensão, subindo uma encosta íngreme de volta ao mundo. Os seguidores de Mercer acompanham essa Ascensão através de “aparelhos de empatia” com uma tela onde Mercer é visto (subindo a encosta com dificuldade) e alças metálicas que, quando são empunhadas, proporcionam uma fusão completa: o indivíduo “torna-se” Mercer, sente o vento frio, as pedras ásperas, o cansaço da subida, e a dor das pedras que pessoas invisíveis lhe atiram, tentando derrubá-lo.

O Mercerismo é uma religião de sacrifício pelos outros, como o Cristianismo. Uma religião de empatia, de compaixão pelo sofrimento alheio, capacidade de colocar-se no lugar de quem sofre. Assim como Mercer se identifica com o sofrimento dos animais a ponto de poder ressuscitá-los ou curá-los, os “aparelhos de empatia” fazem o usuário identificar-se com o próprio Mercer. (O nome, aliás, sugere “mercy”, perdão, bem como “merger”, fusão, mistura).

Rick Deckard (o personagem de Harrison Ford no filme) é um caçador de andróides que vive assaltado por sentimentos contraditórios – piedade pelos andróides que mata, e frieza ao lembrar que são apenas máquinas, não são seres humanos. No fim do livro, Deckard começa a ter suspeitas de que ele próprio seja um andróide. E um programa de TV de sucesso divulga a “bomba”: Mercer é uma mentira, uma encenação, um ator contratado para representar o papel de “messias” num cenário. Mas um dos seus seguidores o encontra, e Mercer lhe diz que sim: tudo aquilo é “fake”, é encenação – mas a idéia é verdadeira. Se a idéia da empatia, do sacrifício e da compaixão são verdadeiras, pouco importa se estão sendo expressas através de um ator decadente e de um cenário pintado. “Se Mercer é falso”, diz Rick Deckard, “então a Realidade também é”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Porque você botou a foto da capa do Jethro Tull no seu post?