segunda-feira, 3 de maio de 2010

1987) Monólogo de um privilegiado (22.7.2009)



“Não pensem que tudo isto nos veio de graça. Nada vem de graça, nada no mundo cai do céu. Nem mesmo a chuva – perguntem aos sertanejos, que vivem bajulando os deuses para conseguir uma neblinazinha de vez em quando. A riqueza dos meus antepassados foi construída com sangue e suor de muita gente, é riqueza com pedigri humano. Os detratores dirão que quem verteu o sangue e o suor foram os escravos e depois os operários cuja mais-valia hemorrágica durante um século criou a luz do nosso sobrenome. Que seja. Já que o passado é imutável, inatingível, o jeito é honrar o sacrifício de tantos para que não tenha sido em vão.

“Não esperem me ouvir alegar que “não tenho culpa de ser rico”. Ser rico não acarreta culpa, e, para mostrar minha imparcialidade, direi que ser pobre também não. Só temos culpa das nossas ações. Nossa classe social foi decidida por um terremoto, uma ruptura, uma clivagem que aconteceu trezentos anos atrás. Ficamos nós aqui e os outros lá. Culpa nenhuma. Remorso nenhum de ser tudo que sou. Resolução inabalável de continuar a sê-lo por mais mil anos.

“E ninguém fique de olho grande nas minhas mordomias, nos meus regabofes, no meu “dolce far niente”. Fariam o mesmo, no meu lugar. Viver bem não é uma decisão individual, é uma condição de classe inescapável. Existe uma força gravitacional que nos arrasta na direção desse estilo de vida, uma força à qual os demais são imunes. Eu não questiono: submeto-me. Vou ao Caribe ou aos Alpes quando me dá na telha, entro na matriz de uma loja portando apenas um cartão de crédito e saio com trinta pacotes, compro por impulso uma casa que vi de passagem pela janela da limusine. E daí? Não faço mais do que o inevitável.

“Somos lemmings felizes, e nos acotovelamos em êxtase pelas aléias do Paraíso. Dignos da mesma comiseração concedida aos que mourejam nas minas de carvão da China ou nos lamaçais diamantíferos de Serra Leoa. Nada daquilo foi escolhido voluntariamente. É tão difícil para um xeique saudita tornar-se um operário da construção civil quanto o inverso. As poucas exceções a essa regra estão todas no cinema, nas telenovelas e nos romances para costureirinhas.

“Os humilhados e ofendidos nada têm a perder na vida senão as correntes que os aprisionam. Nós também. A diferença é que nossas correntes são de outra natureza, foram forjadas para nosso conforto e deleitação. Somos incapazes não apenas de escapar delas, como de sequer considerar essa possibilidade, e nesse sentido somos mais prisioneiros do que o labrego que quebra pedras no sol quente e sonha em fugir dali para tornar-se verdureiro ou pescador. Para estes, coloca-se de vez em quando o sonho ou a ânsia de outra vida. Esse sonhos, essa ânsia, nos são proibidos. Podemos falar a seu respeito, mas sabemos que essa hipótese é como a raiz quadrada de menos 1: uma coisa auto-contraditória, que em sua própria enunciação anula a própria existência.”



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