quarta-feira, 10 de março de 2010

1771) Os Atlas Poéticos (12.11.2008)



(O Rastro dos Cantos, de Bruce Chatwin)

Poemas descritivos de uma geografia são um gênero antigo. Poderíamos chamá-los de cartografias literárias, porque equivalem a um mapa de palavras, mnemonicamente dispostas em versos bons de decorar, para que seu encadeamento não se perca nem se confunda. Recitando baixinho o poema, o viajante poderá se orientar, saber por onde está passando, saber o que vem depois.

“O Rio” (1953), de João Cabral, é descrito de forma cabal pelo seu subtítulo: “Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife”. Cronologicamente se situa entre “O cão sem plumas”, que é um retrato puramente poético do mesmo rio, e “Morte e vida severina”, descrição da viagem que fazem os retirantes num percurso parecido. 

Reza a lenda que o poeta compôs o poema no Rio de Janeiro, com o auxílio da mapoteca do Itamaraty. (Me pergunto quantos poetas de hoje em dia se dariam o trabalho de fazer uma pesquisa para escrever um poema.)

Textos assim, em que o autor leva o leitor a percorrer em mente um espaço físico, são batizados às vezes de “itinerários líricos”, como o que Jomar Morais Souto fez em verso para a cidade de João Pessoa, e o que José Nêumanne fez em prosa para a cidade de Campina. 

Frederico Pernambucano de Mello (Guerreiros do Sol) lembra o poema de Francisco das Chagas Batista, “A política de Antonio Silvino”, de 1908, repleto de “fidelidade microgeográfica”: 

Santa Rita, Espírito Santo 
Mamanguape, Mulungu 
Pilar, Sapé, Guarabira 
São Miguel de Traipu 
Serra da Raiz, Caiçara 
Bethlém, Curimataú. 

Poemas enumerativos, catalográficos, que constituem, para o homem do campo sem alfabetização e sem mapas, uma espécie de Atlas poético a que recorre quando quer checar a existência de um nome, e sua relação com os que lhe estão nas vizinhanças.

Em seu magnífico livro O Rastro dos Cantos (“Songlines”, 1980; no Brasil, Companhia das Letras, 1996, trad. Bernardo Carvalho), Bruce Chatwin estuda a mitologia dos aborígenes australianos, cujo mundo foi criado através de uma canção, ou de um poema. 

Para os aborígenes, os Ancestrais primitivos dormiam sob a terra e foram despertados pelo sol. Cada ancestral de cada coisa viva deu origem a uma espécie: o Homem Cobra, o Homem Cacatua, etc. Rompendo a crosta da terra eles se puseram em marcha, dizendo: “Eu Sou!” Eu sou Formiga. Eu sou Pássaro. Eu sou Cobra. E assim por diante. 

A cada passo dado, eles pronunciavam outro nome, batizando assim os rios, as pedras, os arbustos. No momento em que diziam um verso com o nome daquela coisa, a coisa passava a existir.

Segundo Chatwin as “songlines” são estes cantos intermináveis, que reproduzem, tanto na letra quanto na melodia, o percurso desses Ancestrais pelo continente. Mesmo ouvindo o canto no idioma de uma tribo que desconhece, um aborígene seria capaz de reconhecer, pelo formato da melodia, o trecho que está sendo cantado – se é um rio, uma baía, uma lagoa nova, uma lagoa seca, um mato grosso, um belo horizonte, uma serra talhada, uma pedra lavrada, uma campina grande.






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