quinta-feira, 4 de março de 2010

1744) Machado: “Último Capítulo” (12.10.2008)



Dias atrás, escrevi que o “Capítulo dos Chapéus” era o único conto de Machado com esta palavra no título. Tendo conferido num índice, deixei passar este outro, que não lia há muito tempo e tinha esquecido. 

É o bilhete de suicida de um caipora, um azarado, um cara para quem nada na vida deu certo, e que na infância praticou a façanha de ”cair de costas e quebrar o nariz”. Matias, aos 51 anos, resolve dar cabo à vida ao meio-dia, e para não ser interrompido manda à rua, com um pretexto qualquer, o moleque que o serve. Carrega e engatilha a pistola, faz um testamento às pressas, e põe-se a expor no conto seus motivos. 

Ele conta as mortes na família, as oportunidades perdidas, até mesmo uma surra de encomenda que levou por ser confundido com outra pessoa. No campo amoroso, sua primeira grande esperança foi uma viúva, “ardente, lépida e abastada”, que morava na Rua do Conde. A viúva lhe escrevia cartas apaixonadas que ele mostrava aos amigos, gabando-se. Um deles admirou-se de tanta paixão, e afirmou: “O teu casamento é um dogma”. Ato contínuo, pediu-lhe emprestados cinqüenta mil réis. Envaidecido com o dogma, Matias emprestou-lhos. Seis meses depois, o amigo casou com a viúva. 

Lá se foi ele pela vida, quebrando a cara em todas as portas, até entestar uma amizade com o Gonçalves, “um pulha”, e um prudente namoro com Rufina, “moça de dezenove anos, bem bonita, embora um pouco acanhada e meio morta”. 

Escaldado pelo episódio da viúva, Matias procura agora uma esposa menos voluptuosa mas mais confiável, e é o caso de Rufina: “Era boa por apatia, fiel sem virtude, amiga sem ternura nem eleição. Um anjo a levaria ao céu, um diabo ao inferno, sem esforço em ambos os casos”. Com a inocência dos predestinados, Matias considera ser esta uma esposa de confiança. 

Vem um filho, comemorado com festas e enxovais, mas... nasce morto. Quem o consola é o Gonçalves, freqüentador de sua casa; solícito, sempre presente: “E alegre sempre. Minha mulher achava-lhe muita graça, ria longamente dos ditos dele, e das anedotas, que às vezes eram picantes demais. Eu, a princípio, repreendia-o em particular, mas acostumei-me a elas. E depois, quem é que não perdoa as facilidades de um amigo, e de um amigo jovial?” 

O caiporismo bate mais uma vez à porta de Matias, agora para levar-lhe Rufina, através de “uma febre perniciosa”. Morta, ela torna-se enfim perfeita, intocável, previsível. O viúvo passa a idolatrar sua memória. Nenhuma surpresa lhe pode advir de quem não mais existe. 

Um dia, ele está inventariando os objetos da finada, e acha numa caixinha de costura “um maço de cartas, atado por uma fita azul. Deslacei a fita e abri as cartas: eram do Gonçalves... Meio-dia! Urge acabar; o moleque pode vir, e adeus”. 

Grande, genial Machado. Este corte narrativo surge como um abismo aos pés do leitor. O conto tem mais uma página, cheia de filosofias, sem que Rufina e Gonçalves voltem a ser mencionados.








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