sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

1529) O romantismo dos outros (6.2.2008)


Uma da histórias mais cruelmente irônicas associadas à época da ditadura militar é uma que vi no jornal há vários anos. Um jornal carioca publicou uma entrevista com um brasileiro que se envolveu com grupos subversivos no tempo da ditadura. Depois de algum tempo de atividade clandestina (não lembro agora se ele chegou a ser preso), ele se exilou na Europa e lá ficou. Anos depois da queda do regime militar, a saudade bateu e ele retornou ao Rio.

Na entrevista que deu ao jornal, ele rememorou alguns episódios dos tempos da clandestinidade, entre os quais o dia em que ele e outros amigos prepararam uma bomba e a atiraram no Consulado Americano, aquele prédio alto que fica na Presidente Wilson, a cem metros da Academia Brasileira de Letras. A bomba feriu alguns transeuntes mas não produziu danos apreciáveis no prédio, que parece um bunker. E não se sabe se o abalo sísmico chegou a ser detectado em Washington, na época muito mais preocupada com as bombas vietnamitas. E o ex-terrorista encerrava o relato desse episódio dizendo algo como: “Foi um gesto de loucura, mas nós éramos jovens românticos, queríamos derrubar o regime que considerávamos injusto”.

A história acabaria aí, como tantas outras, se dias depois o mesmo jornal não publicasse outra entrevista, desta vez com um sujeito que leu a anterior. Dizia ele que era um dos transeuntes que, anos atrás, estavam passando em frente ao Consulado Americano, quando uma bomba explodiu. Teve a perna ferida por estilhaços, passou dias entre a vida e a morte, acabou perdendo a perna. Prejudicou-se no trabalho, por invalidez; a família entrou em crise, etc. Todas as consequências previsíveis numa tal situação. E o cidadão anunciava que iria entrar com um processo de perdas e danos contra o ex-guerrilheiro, dizendo: “O romantismo dele acabou com a minha vida”.

Este é um dos muitos episódios que mostram o quanto o terrorismo tem de absurdo, e não só absurdo—o quanto tem de ridículo, pelo que tem de gratuito. Para derrubar um regime cujos cabeças estão a milhares de quilômetros, matamos um guarda que está ali doido para que seu turno acabe e ele possa ir para casa, comer seu feijão e brincar com os filhos. O regime continua impertérrito, e o ditador nem bate a pestana. O terrorismo é a guerra em micro-escala, a guerra vista por um telescópio invertido, reduzida aos menores números, mas mantendo intacta sua estrutura absurda de destruição inútil.

O terror motivado pelo romantismo é tão absurdo quanto os demais. O romantismo nosso acaba sempre entrando em colisão com o realismo alheio. No caso aqui relatado, o que nos impressiona não é apenas a insensibilidade do indivíduo ao jogar a bomba, mas a sua insensibilidade em relatar o fato anos depois, minimizando sua importância, ou reduzindo-a a um gesto de romantismo, ainda sem perceber que seu gesto de rebeldia juvenil destruiu vidas alheias.

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