Anatoly é um russo de quarenta e poucos anos, cabelo grisalho cortado à escovinha, rosto queimado, olhos azuis. Conheci-o numa livraria de Copacabana onde vi que ele estava tendo algum problema com o cartão de crédito. Resolvi interceder como intérprete quando vi que ele estava comprando um pocket-book de Bruce Sterling. Os leitores de ficção científica são uma comunidade solidária, e dez minutos depois estávamos tomando um chope no bar da esquina e fazendo comparações mercadológicas entre a FC brasileira e a russa. Ele falava um inglês melhor que o meu, carregado de sotaque. Às vezes fazia circunlóquios por não lhe ocorrer uma palavra. Para descrever o formato de uma península que visitou, dizia: “Ela tem a forma daquela coisa que a gente aperta com o dedo (fazia o gesto) num revólver...” E eu: “Ah, yes. Trigger. In Portuguese, gatilho”. Ele riu, ficou repetindo e saboreando a palavra: “Ga-ti-lho...”
Anatoly trabalhou com um grupo de Médicos Sem Fronteiras em vários países. “Somos invasores”, disse ele. “Em tal ou tal país, há dois ou mais grupos se matando uns aos outros. Nós invadimos a guerra deles para salvar vidas e remendar os mutilados. Não podemos acabar a guerra, e a todo instante corremos o risco de levar um tiro, porque numa guerra a gente cruza o tempo todo com homens de arma em punho que estão furiosos, ou apavorados, ou paranóicos, ou estão há dias sem dormir e não conseguem pensar direito. Um amigo meu foi morto por um soldado que depois não soube explicar por quê atirara e teve uma crise de choro. Temos uniformes, insígnias, bandeiras e tudo o mais, mas se nos defrontarmos com um cara armado não temos a opção de matá-lo antes que ele nos mate”.
Nossas narrativas heróicas acontecem sempre em torno de um herói armado. O que nosso cinema, nossa literatura, nossa poesia épica teriam a dizer sobre um sujeito que vai para a guerra contando apenas com anestésicos, bisturis e suturas? Médicos de guerra são como jornalistas de guerra: um bando de malucos que tentam praticar profissões civilizadas no próprio epicentro da ferocidade sem estribeiras, da carnificina pela carnificina. Se soldados são heróis, o que dizer de soldados desarmados?
Anatoly mostrou-me a foto da mulher, dos filhos; mostrei-lhe as minhas também. Ele disse que estava no Rio pela primeira vez e que depois de uma semana, inclusive com incursões pela Zona Norte e visita a uma Escola de Samba, não tinha visto violência alguma na cidade. Dei-lhe os conselhos que todo carioca (mesmo adotivo) dá aos visitantes: por onde não andar, como se vestir, o que não usar. Por alguma razão, não temi pela vida de um cara que já levou um total de seis tiros e escapou de todos, foi ferido por granada na Bósnia (mostrou a cicatriz no ombro), e esteve para ser fuzilado como espião por um grupo de guerrilheiros palestinos. “Good night,” disse eu, quando nos despedimos, “and be careful!” Ele riu, fez o gesto com o dedo: “Ga-ti-lho!”
Anatoly trabalhou com um grupo de Médicos Sem Fronteiras em vários países. “Somos invasores”, disse ele. “Em tal ou tal país, há dois ou mais grupos se matando uns aos outros. Nós invadimos a guerra deles para salvar vidas e remendar os mutilados. Não podemos acabar a guerra, e a todo instante corremos o risco de levar um tiro, porque numa guerra a gente cruza o tempo todo com homens de arma em punho que estão furiosos, ou apavorados, ou paranóicos, ou estão há dias sem dormir e não conseguem pensar direito. Um amigo meu foi morto por um soldado que depois não soube explicar por quê atirara e teve uma crise de choro. Temos uniformes, insígnias, bandeiras e tudo o mais, mas se nos defrontarmos com um cara armado não temos a opção de matá-lo antes que ele nos mate”.
Nossas narrativas heróicas acontecem sempre em torno de um herói armado. O que nosso cinema, nossa literatura, nossa poesia épica teriam a dizer sobre um sujeito que vai para a guerra contando apenas com anestésicos, bisturis e suturas? Médicos de guerra são como jornalistas de guerra: um bando de malucos que tentam praticar profissões civilizadas no próprio epicentro da ferocidade sem estribeiras, da carnificina pela carnificina. Se soldados são heróis, o que dizer de soldados desarmados?
Anatoly mostrou-me a foto da mulher, dos filhos; mostrei-lhe as minhas também. Ele disse que estava no Rio pela primeira vez e que depois de uma semana, inclusive com incursões pela Zona Norte e visita a uma Escola de Samba, não tinha visto violência alguma na cidade. Dei-lhe os conselhos que todo carioca (mesmo adotivo) dá aos visitantes: por onde não andar, como se vestir, o que não usar. Por alguma razão, não temi pela vida de um cara que já levou um total de seis tiros e escapou de todos, foi ferido por granada na Bósnia (mostrou a cicatriz no ombro), e esteve para ser fuzilado como espião por um grupo de guerrilheiros palestinos. “Good night,” disse eu, quando nos despedimos, “and be careful!” Ele riu, fez o gesto com o dedo: “Ga-ti-lho!”
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