terça-feira, 22 de dezembro de 2009

1444) O ponto enigmático (30.10.2007)


Existem dois tipos de narrativas de mistério. O primeiro obedece ao que eu chamo de Protocolo da Resposta. Nestas histórias, um mistério é proposto no início, e esclarecido no final. O prazer estético resulta da comparação entre a complexidade do mistério e a engenhosidade da solução. O segundo tipo obedece ao Protocolo da Pergunta. Nele, o mistério é exposto mas não é resolvido no final; a narrativa se encerra com a pergunta ainda no ar. Nestas histórias, o prazer estético resulta da tensão não-resolvida e da possibilidade de inesgotáveis leituras posteriores. Um dos maiores equívocos dos leitores e dos críticos é julgar os méritos de uma obra que obedece ao protocolo A pelos critérios do protocolo B, e vice-versa.

Eu aprecio por igual os dois tipos. Me formei como cinéfilo numa época em que o Protocolo da Pergunta reinava soberano. A gente não ia ao cinema para buscar respostas, mas para compartilhar indagações. E, curiosamente, esses mistérios sem solução não nos deixavam nervosos, impacientes, irritados. Pelo contrário, eram fonte de fascinação intensa e faziam com que esses filmes virassem companheiros de viagem. De vez em quando voltávamos a eles, para ver se tinham algo novo a nos dizer, e sempre, tinham – mesmo que nunca fosse A Resposta.

Em A Aventura de Antonioni nunca ficamos sabendo se a moça desaparecida na ilha deserta morreu, fugiu, ou o quê. Em O Ano Passado em Marienbad de Resnais nunca ficamos sabendo se aquele casal realmente tinha tido um caso amoroso no ano anterior (como insistia em afirmar o homem) ou se os dois não se conheciam (como insistia a mulher). Em Blow Up de Antonioni nunca ficamos sabendo quem era o homem cujo cadáver o fotógrafo registrou sem querer num parque, quem o matou, por quê, e até mesmo se de fato houve crime. Em O Anjo Exterminador de Buñuel nunca sabemos que força fez aquele grupo de milionários ficarem impedidos de sair da sala onde acabaram de se reunir.

Isto tem a ver, claro, com a literatura da mesma época. Em Os Prêmios de Cortázar nunca sabemos por que motivo os passageiros do navio são proibidos de acessar certas áreas do mesmo. Nos livros de Kafka, nunca ficamos sabendo por que motivo Joseph K foi preso, por que motivo o Conde de West-West não recebe o agrimensor em seu Castelo.

Cada história destas tem no centro um Ponto Enigmático, um vazio que não pode ser preenchido por explicações. As explicações são criadas, ajustam-se provisoriamente a ele, mas não o anulam. A fascinação do mistério, a possibilidade de lidar com coisas incompreensíveis, é um dos impulsos que nos aproximam das obras de arte e das grandes narrativas. Daí, talvez, o sucesso de séries como Arquivo X (que acompanhei por muitos anos) e Lost (que infelizmente nunca assisti). Nunca temos acesso a uma visão geral do que está acontecendo, e essa tensão entre a necessidade e a impossibilidade de “saber tudo” gera nos espectadores algo que é parecido com o amor.

Um comentário:

Paulo Fodra disse...

Ficamos todos muito mal "adestrados" pelos esquemas hollywoodianos. Tanto que quando se escreve uma história que tem mais perguntas que respostas, somos considerados herméticos. Se matarmos o mocinho, então? Somos desgostosos. É a Síndrome do Final Feliz... e dá-lhe massificação!