segunda-feira, 30 de novembro de 2009

1387) O Estranho e o dr. Freud (24.8.2007)



Num ensaio de 1919 (“O Estranho” ou “O Sinistro” -- Das Unheimlich) Freud procura examinar nossa sensação de estranheza e de ameaça quando nos deparamos com imagens que ele enumera: mortos, aparições, membros ou crânios decepados, pessoas enterradas vivas, autômatos que parecem humanos ou vice-versa, coincidências ou fatalidades, a compulsão de repetir atos inexplicáveis, etc. Freud compara essa sensação com a palavra alemã correspondente, “unheimlich”, que é a forma negativa de “heimlich”. E é o caráter desconcertante desta última que ele discute, porque é uma palavra que tanto pode significar “doméstico, aconchegante, familiar” como também “secreto, oculto” – dois sentidos aparentemente contraditórios.

Freud faz em seu ensaio um espantoso levantamento lexicográfico dos usos dessa palavra na língua alemã, e através das dezenas de exemplos que ele cita é possível até mesmo para um analfabeto em alemão, como é o meu caso, perceber as conotações que a palavra assume através das épocas, e de diferentes dicções: literária, regional, antiga, moderna... Minha teoria é que os dois sentidos de “heimlich” não se contradizem; um é a intensificação do outro.

Nossa mente atua em três círculos, ou esferas. Uma é a esfera pública, onde usamos nossa “persona”, nossa face social para consumo externo: nosso nome, rosto, profissão, função no mundo. Mas dentro dessa esfera temos uma outra onde nos refugiamos em busca de tranqüilidade. É o nosso espaço caseiro, doméstico, familiar (e isto é o sentido 1 de “heimlich”). Poderíamos compará-lo à sala de visitas, onde nos recolhemos para conviver com aqueles que nos são íntimos.

Dentro dessa esfera, no entanto, existe outra mais reservada ainda. Uma esfera secreta, oculta (e este é o sentido 2 de “heimlich”), um lugar onde existimos a sós, dentro de nós mesmos. Não temos nenhuma palavra em português para abranger os dois sentidos de “heimlich”; talvez a que mais se aproximasse fosse “privado”, palavra que tanto pode se aplicar ao espaço do convívio familiar (residência privada, aposentos privados) quanto ao local cercado de tabus e proibições (a Privada propriamente dita).

O Estranho, para Freud, é o que envolve ressonâncias emocionais ligadas a estas esferas. Não é simplesmente o que provoca terror – porque um tigre faminto, um criminoso armado ou um terremoto também o provocam, mas esse terror não vem acompanhado pela sensação do Estranho. O Estranho (“unheimlich”) é algo que foi familiar e não o é mais, porque foi reprimido, tornou-se oculto. E é algo que foi oculto e também não o é mais, porque emergiu, escapou à repressão, retornou para nos assombrar como algo que supúnhamos morto e sepultado. O Estranho é portanto essa contradição em termos, algo “estranhamente familiar”, que nos produz uma sensação de angústia como a que temos quando vemos uma pessoa de aspecto desagradável e só depois percebemos que é o nosso reflexo no espelho.

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